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05 março 2023

amadeu baptista / carta de atenas

 



6
 
Nessas noites ouvia-se o rio respirar, a mãe
dizia secretas orações, os lobos uivavam
no centro da cidade. Enquanto dormiam os irmãos,
eu apertava uma velha caixa de sapatos contra o peito,
     um coelho
corria no escuro, murmúrios ancestrais circulavam no interior
     das salas. Dizia-se
que os deuses nos temiam, gente
completamente impotente perante a nossa escuridão, um
     tempo
surdo, maligno,
em que recrudescia a vontade de chorar.
 
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999




14 outubro 2021

amadeu baptista / taxa de juro

 
 
 
Vigio estas ruínas, roubador de secretas implosões
                que tecem os segredos da noite. De longe observo
os que dulcificam e pervertem este rumor nocturno, a visão
incendiária de um lenço suspenso sobre miríades de insectos
                agonizantes. Esses animais empolgam-me, são
insondáveis ruídos dentro da minha boca, o meu sangue perscruta-os,
                excede-os na lucidez da maldição, desejo-lhes
                o visco que soltam na irrealidade da passagem, amo-os
como se fossem voláteis transparências de um universo voraz
que secretamente reúne a profetização e as vítimas
                em torno do abismo. Tudo é sagrado,
a destroçante imagem desses corpos que o esquecimento ilude,
                a fragrância de todas as substâncias lancinantes
que pulsam sob a terra, esse imperceptível murmúrio de escuridão
                que nas têmporas se esconde, consumindo
a imóvel opacidade que percorre a loucura. Com as mãos
                escavo este lugar sagrado de claridade e torpor,
                o deserto imperturbável das órbitas silenciosas
destes mortos, a película de impaciência e luz que os nossos
                dedos tocam,
                devastadoramente.
 

 

amadeu baptista
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991




30 dezembro 2020

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
1
 
Pouco hei-de saber dos pássaros e das cores
nestes dias cinzentos de melancolia.
As árvores não repousam sob os olhos
com que as vejo transgredirem para sempre
o plano irreal da eternidade.
Na felicidade do azul perscruto a breve
fragmentação da natureza, os verdes inequívocos.
A sorte dos vermelhos, os amarelos inimagináveis
desta praia em que o mistério flui
para outra treva de mais silentes horas.
Em tudo ignoro e reconheço inviamente
o translúcido poder do infinito.
 
  
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999





23 maio 2020

amadeu baptista / mil novecentos e cinquenta e três



Logo no primeiro ano
estou só
e não me consigo manter de pé.

Se suspeitasse sequer
que iria ser assim para toda a vida
não me riria

com estas gargalhadas
cristalinas.



amadeu baptista
açougue, 2012
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017







07 fevereiro 2018

amadeu baptista / os selos da lituânia




14

valha a verdade, estive sempre só
na adolescência. por isso, a escrita
serviu no desamparo para tomar
consciência de que há sempre uma voz
que recupera connosco dos inúmeros
desagravos que a vida vai fazendo
para além do limite suportável,
sendo que em tudo existe violência.
à música devo muito e ao cinema.
ao mar provavelmente devo tudo.
mas foi na escrita que sempre me revi
quando os grandes dissabores principiaram
a marcar-me na face sinais incontornáveis
de solidão e medo. ao meu redor
tudo me pedia que ficasse atento
a tudo quanto via. há um mistério
inquestionável que preservo e flui
para a memória e da memória chega.
é como um cadáver deitado à nossa frente
que não se pode explicar mas que podemos
ver por dentro, adivinhando
as manchas que lhe vão na alma
e tudo o que já foi e já sonhou
e teve como seu e está perdido, implacavelmente.
desse cadáver não sabemos nada,
quem é,
de onde veio,
para onde irá
em corpo ou espírito noutro tempo.
contudo, nos seus lábios ressequidos,
na boca cerrada e no olhar parado,
nos ombros sinuosos e nas despojadas mãos
está inscrito o fascínio do que é,
além do mais, notícia e expectativa
que no caos turbilhonante é um clamor.
tudo é deslumbramento, tudo deve
passar-se para os outros como se
o que é perseguido assinalasse
o decisivo momento da nossa epifania
e do nosso testemunho sobre a terra,
com a esperança e angústia de quem sabe
que nenhuma palavra é redentora
e um verso ou uma frase não nos salva
do que quer que seja. a escrita
é um incêndio ausente
e nessa ausência
só é possível ressuscitar dos mortos.



amadeu baptista
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017





15 dezembro 2017

amadeu baptista / praia da granja





Pelo que quer que seja a exaltação habito aqui,
nesta casa de sete janelas,
com uma pequena porta e uma varanda verde.

A praia incendeia-me os olhos,
e chamo, chamo à mulher espiral do mundo.

Toco com um dedo o muro branco e acrescento
ao entendimento ervas amargas, animais solares
e obscuros, um antigo instrumento de trabalho,
o búzio, o barco, o arado,
um ramo de salgueiro, esta pedra incisiva,
uma maçã vermelha.

Guardo no coração uma voz que vai de lugar em lugar
a interrogar as sombras
e no poema murmura o poder das cintilações
sobre a cânfora,
a hortelã,
os figos,
o encantamento,
a cabeça da víbora.

A extensão desta casa é a dimensão desta praia
divina sobre as águas,
tal como é divina a mulher que me acompanha
e a quem chamo espiral do mundo
por ter criado um sortilégio assim,
uma casa grega,
branca,
nítida,
com sete janelas,
uma pequena porta e uma varanda verde
sobre o mar.

antologia A Sophia, Lisboa, 2007



amadeu baptista
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017





22 setembro 2015

amadeu baptista / o centro do mundo


7

Muito em breve irei pertencer a outra dimensão da terra.
Eu espero todos os continentes e todos os glaciares,
aguardo inequivocamente todos os céus onde hei-de
     encontrar
a impaciência do homem na solidão do mundo.
De novo anseio palavras elementares para descrever a viagem.
Todas as palavras que alguma vez usei são escassas
após o regresso para nova partida.
Procuro agora palavras cortantes como uma lâmina, inquietas
como uma ave, secretas como o olhar
de quem me julga e condena.



amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999



27 agosto 2015

amadeu baptista / carta de atenas



16

Há uma cidade sem mar em que procuro uma praia.
Os homens chegam. Não despertaram as casas
e já tomo nos braços o meu vazio. Eles dizem:
–  “ Procurámos a sombra de uma mulher.”

Durante toda a manhã as portas franqueadas
deixaram entrar toda a espécie de gente.
Na multidão um vagabundo chama o meu nome.
Não sei que responda. Passou demasiado tempo.

Os exércitos arrebataram o triunfo.
Amontoaram os cadáveres no silêncio.
Pela minha vigília o pesadelo alastra.
Há demasiado sangue nestes epitáfios.

Pouco tenho a dizer.
O eco subverte o clarão no horizonte
quando a pira está pronta para o sacrifício.
A inquietação é agora a minha alma.

Em nome da beleza a praia não existe.
A sombra procurada é só uma miragem.
O auriga avança no firmamento.
Pelo meu nome a cinza é um ser vivente.



amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999




22 outubro 2013

amadeu baptista / ronda dos traidores



Povos traídos já o foram muitos.
De gregos a romanos a mais de muitos centos
todos foram incorporados no grande índice
dos bichos que sentiram a lâmina na goela,
ou a entrar nos flancos para que não pudessem
ser o quanto queriam nos seus sonhos débeis.
O mal é esse mesmo, que possa a traição
grudar-se aos ossos e os mentecaptos
se sirvam dela nos banquetes férteis
em que de lampreia e faisão se embrutecem,
enquanto nos baldios a pobreza cresce.
Contudo, os brutos serão sempre os outros,
que ao longo da história se omitiram
por um gesto em falso ou um maligno passo,
ou até mesmo um decreto do senado.
Ou dormiram demais, ou no seu sono leve
trabalharam muito para que a indulgência
lhes custasse a família, os filhos, o sustento
e fossem retalhados como cordeiros mansos
que das regiões claras só podem conhecer
a escuridão infrene que os aniquila.
Traídos os traidores da ousadia
de permanecerem traídos para sempre
melhor seria que sangrassem dos ouvidos
ou que a boca de raiva lhes espumasse
pelas lídimas trafulhices de que são vítimas.
Ainda assim, não se passa nada. À vida
vão uns tantos para sofrê-la, a ranger
os poucos dentes ralos e a pôr as unhas
a salvo de qualquer lima, que está caro
o aço e nada é mais diverso
do que querer-se algo e nada se fazer
para que alguma coisa mude para que tudo
fique tal como estava antes do que se quis
mudar no âmbito das pirâmides
ou dos jardins suspensos. Traidores, portanto,
é o que mais há nas longas multidões
que os povos significam, ajoelhadas
bestas que aqui ovacionam e mais além
irão querer linchar sem que para isso
tenham paixão bastante. Dúvidas há
de que sejam homens, ou que da sua
espécie a humanidade seja em seu ardor
e escala de ansiar o pão, a paz, a liberdade,
sem que, no entanto, alastrem pelo mundo
a reclamar a luz que deveria pertencer-lhes.
E ainda falam do tempo irrepetível,
dos becos sem saída, das vozes inaudíveis,
da coroação do espanto, dos mares repletos
de fúrias e desmandos. A uns e outros todos
se vão traindo, cheios de culpa mas nunca
com remorsos de enquistarem assim os corações
nefastos, demasiado puros da pulhice alheia
que só deles mana. Não se lhes cansa o olhar
das grades  que em volta  assestam
as prisões que para si criaram,
danados de requebros não mais do que servis
à espera das migalhas que irão cair
do espavento dos bolsos que alguns benévolos
premeditadamente planeiam denegar
à fome secular e à calamidade.
Melífluo é o combate marcado por recuos,
surtos de aleivosias, suplicações, errâncias,
e a boa-fé fenece entre os traídos, prostrados
sobre a lama que os seus pés abriram
sem que de nada mais se arroguem que a traição
que lhes corre no sangue e lhes domina o espírito.
A uns e outros se abatem pelas costas.
Os de cima os de baixo e os de baixo
os de baixo, que é sempre a cair
que há-de ficar-se em coisas de ignomínia,
ou nas sujeições ignóbeis da desgraça,
ou no destemor que alguns da covardia
sacam, havendo sequazes e facas disponíveis,
usadas com perícia  a perorar
as circunstâncias graves em que se vive
num território de recursos parcos.
Traidor é sempre quem trair se deixa,
atento ou desatento à luz dos anos,
pasmado ou exaltado no seu entusiasmo
de ser sem terra, ou ter sido dela
há muito expulso, ou ser seu pasto
em vida como o será quando for morto,
a privar com os vermes que, afoitos,
em cada aresta sopesam o momento
para abocanhar a carne das ovelhas
que, cegas e ordeiras, transitam
no foco de infecção  para que alastre
a irredimível doença de que todos
sofrem. Ah, os rostos giram
nas quadraturas dos séculos, vãos uns
ceder e outros descompor-se, outros
empenham a palavra e voltarão com ela
atrás,  pelo caminho ínvio, ainda outros
murmurarão a surdina entorpecente
de um rumor, de uma conjura, de um juro
que se cobra, de uma mácula caída
sobre a melhor nódoa , de uma arma aperrada
contra o dilecto amigo, de um rei que abjurou,
de um crente que se fiou, do alento
de um homem que a si mesmo se traiu,
assim como traiu os seus mortos antecedentes
e consequentes, em velhas e novas gerações
de traidores no comum descampado
dos tempos indizíveis, coberto de fósseis e sangue
ressequido. Ah, todos traímos a infância, o menino
selvagem, o castanheiro espesso, o regaço
de quem nos olhou  pela primeira e pela última
vez como um filho querido e nos deixou partir
para a imobilização, a providência, o sossego,
a contagem incólume dos cabelos,
o beijo na face e a mão sobre o ombro,
a candura aos portões da Babilónia, os catorze
mil cegos que Samuel viu arrastar-se
nas montanhas da Macedónia a caminho de Ohrid,
vítimas estes da traição que a fereza é.
É desse lixo que os monturos se ampliam,
traição sobre traição sem mais remédio
do que ver o mundo a dissipar-se nos resquícios
da compaixão, do nojo, da bondade.
E no horizonte crespo o deserto amplia-se,
passam os comboios mas tudo está perdido,
o mar adensa-se e as traições
progridem, obsessiva e suja
a noite cobre tudo a ocultar quanto se fez
de criminoso e baixo e se sepulta nos bustos
de estuque que as galerias mostram,
um rol de heróis que a própria mãe venderam,
sem mais consolo do que viverem disso,
por um domínio, um lugar, uma quantia,
uma vara de porcos, castrados e cevados.








17 agosto 2012

amadeu baptista / a noite de pavese






Raras vezes me franquearam a porta  
e me deixaram entrar. A febre  
sitia-me a alma e quem me vê  
assusta-se do aspecto do meu rosto,  
esta barba por fazer onde um rouxinol  
se esconde. E mais ainda assusta  
a minha altura, este lugar de vertigem  
e palavras poderosas, a presença  
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,  
o estremecimento que corre nos meus ombros.  
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.  
E quando entro nas casas os meus gestos  
afeiçoam-se a alguma coisa enigmática  
que contorna o pavor e o entrega  
por não se saber que espécie de vida ou de morte  
vem comigo. Obviamente, eu abençoo  
quem me deixa entrar, dou a entender  
que alguma coisa brilha nas minhas mãos  
e posso matar a fome com uma ou outra palavra  
próxima do amor, um dedo nos cabelos  
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa  
em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem  
com as inefáveis sombras que vejo nos outros  
e tento decifrar para meu contentamento.  
Mandaram-me sentar e deram-me de beber.  
Esse álcool reconfortou-me a alma.  
E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo  
e nítido, observando a mulher nesse sem fim  
das coisas, onde todos os mistérios avançam  
para uma explicação que a qualquer momento  
pode irromper do espírito como uma explosão.  
Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas  
que me ofereces, o teu rosto é-me familiar  
se recuar à infância e subitamente perceber  
que também pertenci ao exercício desta árvore   
que nesta sala se levanta. Em frente,  
na fotografia que o meu olhar alcança  
porque me alcança o olhar que dela se desprende,  
inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar,  
mais que um rumor ou um fio ténue  
com o nome de todas as coisas inesperadas  
que me aconteceram na vida, sempre  
que me franquearam a porta e me deixaram entrar.  
Agora, com a memória de ter estado em tua casa  
e ter recebido a graça de alguma atenção,  
eu, que sou pedinte embora nada peça,  
entrego-te este sulco da desordem  
sobre a página em branco e agradeço-te  
com o conhecimento de um outro mundo  
ainda mais inexplicável.  
Não tendo havido despedida, sabe que permaneço  
e na encruzilhada das dores que me couberam viver  
não esquecerei o teu nome no dia em que também tiver partido  
e mais nenhuma luz houver além daquela  
que ilumina o teu rosto na solidão da noite.  
Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar.  
Que me seja a alba a tua tolerância. 




amadeu baptista


20 setembro 2010

amadeu baptista / cúmplices





20.

Este será o coração da partida, o olhar
que em silêncio incendeia a árvore
e faz a pedra pulsar. A eterna carícia
e o último despojamento
quando a luz inaugura a doçura, esse rumor
inquieto na solidão, o corpo extenuado
que se rende à terra e cede ao enigma
do fogo e à magia do vento.

Neste vocábulo planto um arbusto de sangue, a mais secreta
gruta em que me despeço das aves, a extensa brancura
do primeiro fascínio da tua pele
a que regressarei para sempre
após a faca lentíssima no peito
e os veleiros imponderáveis de Aland
onde me encontro e me perco
para a extrema cumplicidade do amor e da morte.







amadeu baptista
cúmplices
nova renascença vol. XVI
inverno / outono de 1996
fundação eng. antónio de almeida
1996







13 junho 2010

amadeu baptista / estações






Miúdos de treze anos fumam erva
nas obras das traseiras,
a vizinha
recorre ao xanax e à catatua
para recuperar a adrenalina, o octogenário
dorme no cadeirão de orelhas secundado
pelo cão que a netinha
há-de supliciar até à raiva. Ronrona
a gataria pela lata de sardinha
que a louca do bairro distribui
ao final da manhã, ainda a esquina
está incandescente da matilha
que assediou o quarteirão durante a noite.
Camas desfeitas dos corpos dos amantes
lembram-me a tua ausência
incontornável.






amadeu baptista
estações
apeadeiro / revista de atitudes literárias
primavera 2002
quasi
2002






28 março 2007

arte do regresso


13.



Tudo o que aconteceu no passado
está agora presente como uma fogueira.
A tua ausência permanece.
A árvore oscila entre o mar e a terra,
os ramos quebram-se nesse vento funesto,
vejo que passas com as mãos a arder
e a brancura intensa a cobrir-te a cabeça.
O rosto é ainda o último refúgio.







amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999