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05 agosto 2023

antónio osório / o betão armado

 
 
A tristeza das pessoas.
A tentação da infelicidade.
A crueza, os arremessos,
a leonina inventiva.
Como sabem desfazer.
O horror que sentem.
A falta de escrúpulos.
De consentida fragilidade:
dar, num verso, a outra face.
 
 
 
antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
décima aurora (1982)
assírio & alvim
2006




25 março 2023

antónio osório / um sentido

 




 
Porque há um sentido
no lírio, incensar-se;
e no choupo, erguer-se;
e na urze arborescente,
ampliar-se;
e no cobre, primeira cura,
que dou à vinha,
procriar-se.
 
E outro, pressago,
sentido há na memória,
explodir-se.
E outro, imensurável,
no amor, entregar-se.
E outro, definitivo,
na morte, render-se.
 
 
 
antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
felicidade da pintura
assírio & alvim
2006
 




29 maio 2022

antónio osório / andorinhas

 
 
À vacaria os dois casais voltaram.
Os ninhos junto da lanterna,
arca da sua aliança,
e armadilha, rede de aranhas.
As vacas levantam os olhos
e o calor do corpo, da bosta
comunicam, cifrada mensagem
para outros seres, próximos,
também por elas e pela luz gerados.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982




 

05 setembro 2021

antónio osório / o tempo no baloiço pendulava

 
 
O tempo no baloiço pendulava
era infindo, dependente, meu.
Sob a latada o tempo eu conduzia,
ele voava segundo a segundo,
rebanho, sem poeira, desfilava.
 
Quase tocava nos cachos de uva.
Outro tempo infiltrava-se nos bagos,
Chamava pardais, abelhas, cestos vindimos,
e embrandecia, adoçava a sua queda.
 
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982

 




20 abril 2021

antónio osório / para ti

 
 
Para ti
guardei em Abril
o branco das cilindras.
 
 
Toma, agasalha-as no peito,
protege a primavera já morta.
 
 
 
antónio osório
casa térrea
o lugar do amor
gota de água
1981





 

21 dezembro 2020

antónio osório / fala o arrumador de automóveis

 
 
Assustado com a miséria e estes anos,
pouco espero de Deus e dos homens.
Não mendigo, olho de soslaio, adivinho,
sem gratidão guardo no bolso os óbolos.
E fui pescador, depois faroleiro: longe
deitava a alma, relâmpago
sobre falésias, em estrelas tocava,
a sirene era o meu grito de amor.
Transluzente e distante e bom
como clarões de um farol nunca foi fácil:
algo se afundava debaixo de mim,
desconhecida culpa. Odeio, sim, odeio
este parque onde chuva e sol impõem as mãos
e na pele penetram sem bálsamo.
Primeiro a luxúria, depois vinho,
escuridão. No fundo de um poço
cujas paredes ressumam lágrima e avencas.
Custar ganhar a vida e perdê-la.
Tudo foi defraudado, sou eu
– eu ou alguém por mim – quem aperta
desde a infância o nó que me estrangula.
 
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982




 

08 abril 2020

antónio osório / trinta e nove anos



É um bem que me roubem e explorem;
um bem que saibam quanto valho (nada);
um bem que espreitem, que circulem
incólumes, que amedrontem e persigam;
um bem que me desprezem e destruam
e um bem maior ainda que me ignorem,
porque é preciso pagar, e caro, a vida.



antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982









25 outubro 2018

antónio osório / diospiro




O verde converte-se em vermelho,
é o outono nas folhas do diospiro.
E caem intactas, por terra
são fogo adolescente. Tudo porque
no alto entre labaredas
amadurecem os frutos, oferta
do divino, desgostoso de si próprio.


antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982











08 setembro 2018

antónio osório / amo os loucos




Amo os loucos,
crianças tagarelando
que descobrem, instante
a instante, o mundo
e tudo enovelam
à sua translúcida maneira.

Não possuem maldade,
mas ignorado amor
e incapaz poesia.



antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981









06 julho 2017

antónio osório / entrar contigo




Entrar contigo
dentro das searas
e depois
trigo
sairmos da terra



antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981





11 março 2017

antónio osório / despir a floresta



Despir a floresta,
conduzir as nuvens
até à próxima nascente.


E alegria em terra lavrada,
Confortá-la na mão
Por suas invisíveis sementes.


antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981




05 outubro 2016

antónio osório / é dado amar sempre mais




É dado amar sempre mais
um mesmo ser.

É dado confundir-se
com a quebração das ondas.

É dado manter
o rescaldo vibrante do fogo.


antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981






06 outubro 2015

antónio osório / circo



E súbito na rua desfilaram
os fatigados elefantes
e símios, bobos de bobos, anões
falsamente ledos, a trapezista
que me deu vontade de chorar,
aqueles seres, os palhaços, que traziam
o admirável grotesco dos homens,
os cavalos, brancos já por sua idade
e a jaula viajante dos leões,
estendidos, expectantes como sáurios.
E por uma contorcionista,
Que torturava o corpo,
apaixonei-me:  enredada em mim,
como serpente, estava a sua alma.


antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
a matéria volátil
assírio & alvim
2006




25 março 2013

antónio osório / o canário assistente




Ao lado dos dois pianos
assiste à lição da menina.

É generoso com o velho
professor. E cantando
também ele ensina tudo o que sabe.



antónio osório
de planetário e zoo dos homens
a escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
março de 1990



09 março 2012

antónio osório / a antiga pensão





Às escuras
os cães temem
subir as escadas.
Como crianças
e mulheres velhas.

Pelo estudante
esperavam
à porta da pensão.
Ficavam
no terceiro andar.

Vindo atrás,
degrau a degrau,
ele falava
e a voz
subia, iluminava.





antónio osório
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010




06 fevereiro 2012

antónio osório / augúrio





Não antecipes a tristeza
de morrer: não queiras muito
às lágrimas: consola-te
bebendo-as. E sê grato ao dia
em que, vivo, as tragaste.



antónio osório
casa das sementes
décima aurora
assírio & alvim
2006




26 julho 2011

antónio osório / o regresso

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Regressado da morte
procurava o calor das fogueiras
o cheiro lêvedo do pão,
o passo dos cegos na rua,
o ninho ancorado à varanda
com o seu frágil, suspenso
voo de barro, as grandes rugas
das casas que envelhecem.
 
Oh a alegria
de tocar na própria carne,
no rosto que vira inquietantemente crescer.
 
Nem que fosse um instante,
seguia o rasto ido do futuro
e sonhava ser aquilo que não fui:
o Inca clandestino, a coberta das árvores
depois das últimas chuvas de Outono,
antiquário de raízes, fósseis, destruições,
o cúmplice dos que se amam, ou nuvem
que de outras nuvens se aproxima,
rio que noutros rios deita a sua água,
pai exangue ou filho de tudo quanto existe.
 
 




antónio osório
casa das sementes
a raiz afectuosa
assírio & alvim
2006
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