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06 janeiro 2024

cesare pavese / revelação

 
 
 
O homem só volta a ver o rapaz do magro
coração, absorto a espreitar a mulher que se ria.
O rapaz erguia o olhar para aqueles olhos,
onde os rápidos olhares estremeciam nus
e estranhos. O rapaz recolhia um segredo
naqueles olhos, um segredo como o regaço escondido.
 
O homem só estreita no coração a recordação.
Os olhos desconhecidos queimavam como queima a carne,
vivos de húmida vida. A doçura do regaço
palpitante de cálida ansiedade transparecia
naqueles olhos. Brotava angustiado o segredo
como sangue. Tornavam tremendas as coisas
na luz tranquila das árvores e do céu.
 
O rapaz chorava na noite submissa
ralas lágrimas mudas, como se já fosse homem.
O homem só reencontra sob o céu distante
Aquele olhar recatado que a mulher depõe
no rapaz. E volta a ver aqueles olhos e aquele rosto
recomporem-se submissos ao sorriso habitual.
 
 
 
cesare pavese
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


04 agosto 2023

cesare pavese / passarei pela praça de espanha

 
 
O céu estará límpido.
As ruas abrir-se-ão
sobre as colinas de pinheiros e pedra.
O tumulto das ruas
não modificará esse ar imóvel.
As flores salpicadas
de cores, que há nas fontes,
piscarão os olhos como mulheres
divertidas. As escadas
os terraços e as andorinhas
cantarão ao sol.
Abrir-se-á aquela rua,
as pedras cantarão,
o coração baterá em sobressalto
como a água nas fontes –
será esta a voz
que subirá as tuas escadas.
As janelas saberão
o valor da pedra e do ar
matinal. Abrir-se-á uma porta.
O tumulto das ruas
será o tumulto do coração
na luz perdida.
 
Serás tu – imóvel e clara.
 
 
                   28 de Março de 1950
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos (11 Março-11 Abril, 1950)
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021
 



07 maio 2023

cesare pavese / a arte de desenvolver os pequenos motivos




9 de Outubro de 1938
 
A arte de desenvolver os pequenos motivos para nos decidirmos a realizar as grandes acções que nos são necessárias. A arte de nunca nos deixarmos desencorajar pelas reacções dos outros, recordando que o valor de um sentimento é juízo nosso, pois seremos nós a senti-lo e não os que assistem. A arte de mentir a nós próprios, sabendo que estamos a mentir. A arte de encarar as pessoas de frente, incluindo nós próprios, como se fossem personagens de uma novela nossa. A arte de recordar sempre que, não tendo nós qualquer importância e não tendo também os outros qualquer espécie de importância, nós temos mais importância do que qualquer outro, simplesmente porque somos nós. A arte de considerar a mulher como um pedaço de pão: problema de astúcia. A arte de mergulhar fulminante e profundamente na dor, para vir novamente à tona graças a um golpe de rins. A arte de nos substituirmos a qualquer um, e de saber, portanto, que cada pessoa se interessa apenas por si própria. A arte de atribuir qualquer dos nossos gestos a outrem, para verificarmos imediatamente se é sensato.
 
A arte de viver sem arte.
 
A arte de estar só.
 
 
 
cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004
 



 

22 abril 2023

cesare pavese / tolerância



 

Chove sem ruído no prado do mar.
Nas ruas sujas não passa ninguém.
Do comboio desceu uma mulher sozinha:
por baixo do casaco comprido viu-se a combinação clara
e as pernas desaparecerem por uma porta escura.
 
Dir-se-ia uma aldeia submersa. O anoitecer
pinga, frio, sobre as soleiras das portas, e as casas
espalham na escuridão um fumo azulado. As janelas
acendem-se, avermelhadas. Acende-se uma luz
entre as portadas fechadas na casa às escuras.
 
Na manhã seguinte está frio e o sol brilha sobre o mar.
Uma mulher em combinação lava os dentes
na fonte e a espuma é rosada. Tem cabelos
louros arruivados, semelhantes às cascas de laranja
espalhadas no chão. De bruços na fonte, nota pelo canto do olho
um gaiato moreno que a fita encantado.
Mulheres feias abrem as portadas de par em par para a praça
– os maridos dormitam ainda, no escuro.
 
Quando volta a noite, a chuva recomeça
e crepita sobre as muitas lareiras. As esposas,
ao remexerem as brasas, deitam olhares à casa
às escuras e à fonte deserta. A casa
tem as portadas fechadas, mas lá dentro há uma cama,
e na cama uma loura ganha a vida.
Toda a aldeia descansa de noite,
toda, menos a loura que se lava de manhã.
 
 
 
cesare pavese
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


 


19 outubro 2022

cesare pavese / és como uma terra

 
 
És como uma terra
que nunca ninguém disse.
Não espera nada
a não ser a palavra
que brotará do fundo
como fruto entre os ramos.
Um vento que se aproxima.
Coisas secas e mortas
embaraçam-te e vão no vento.
Membros, palavras antigas.
Tremes no verão.
 
            29 de Outubro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021






 

07 fevereiro 2022

cesare pavese / e então nós os vis

 
 
E então nós os vis
que amávamos a noite
rumorosa, as casa,
os percursos no rio,
as luzes vermelho sujo
desses lugares, a dor
mansa e calada –
arrancámos as mãos
de cadeia viva
e calámo-nos, mas o sangue
fez estremecer o coração,
e não houve mais doçura
nem mais abandono
aos passeios no rio –
não mais servos, soubemos
que estávamos sós e vivos.
 
                         23 de Novembro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021




 

19 dezembro 2021

cesare pavese / o paraíso sobre os telhados

 
 
Será um dia tranquilo, de luz fria
como o sol que nasce ou que morre, e o vidro
fechará por fora o ar sórdido.
 
Acorda-se uma manhã, de uma vez para sempre,
na tepidez do último sono: a sombra
será como a tepidez. Encherá o quarto
pela grande janela um céu mais vasto.
Da escada subida um dia para sempre
não virão mais vozes nem rostos mortos.
 
Não será preciso deixar a cama.
Só a aurora entrará no quarto vazio.
Bastará a janela para vestir cada coisa
de uma claridade tranquila, quase uma luz.
Pousará uma sombra descarnada no rosto supino.
As recordações serão coágulos de sombra
calcados quais velhas brasas
na chaminé. A recordação será a chama
que ainda ontem picava nos olhos apagados.
 
 
 
cesare pavese
paternidade
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


13 agosto 2021

cesare pavese / virá a morte e terá os teus olhos

 



 

Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um remorso antigo
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito reprimido, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sozinha te inclinas
diante do espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos nós também
que és a vida e és o nada.
 
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Mudos, desceremos ao abismo.
 
 
                                22 de Março de 1950
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021





 


24 maio 2021

cesare pavese / the night you slept

 
 
Também a noite se parece contigo,
a noite longínqua que chora,
muda, no fundo do coração,
e as estrelas passam cansadas.
Uma face aflora uma face –
é um tremor frio, alguém
se agita e te suplica, só,
perdido em ti, na tua febre.
 
A noite sofre e anseia pelo amanhecer,
pobre coração que estremeces.
Ó rosto fechado, negra angústia,
febre que afliges as estrelas,
os que esperam como tu o amanhecer
sondam o teu rosto em silêncio.
Estendes-te sob a capa da noite
como um horizonte morto e fechado.
Pobre coração que estremeces,
num dia distante foste o amanhecer.
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021






 

16 abril 2021

cesare pavese / trabalhar cansa

 
Atravessar uma rua para fugir de casa
só um rapaz o faz, mas este homem que vagueia
todo o dia pelas ruas já não é um rapaz
e não foge de casa.
 
                                                                     Há no Verão
tardes em que até as praças ficam vazias, estendidas
ao sol que vai pôr-se, e este homem que chega
por uma avenida de árvores inúteis para.
Vale a pena ser-se só, para se estar cada vez mais sozinho?
Percorrê-las apenas – as praças e as ruas
estão vazias. Havia que parar uma mulher
e falar-lhe e convencê-la a viverem junto.
Doutro modo fala-se sozinho. É por isso que às vezes
vem abordar-nos o bêbado nocturno
e conta os projectos de toda a vida.
 
Não é certamente ficando à espera na praça deserta
que se encontra alguém, mas quem anda pelas ruas
de vez em quando para. Se fossem dois,
mesmo a andar pelas ruas, a casa seria
onde está essa mulher e valeria a pena.
De noite a praça volta a ficar deserta
e este homem que passa não vê as casas
nem as luzes inúteis, já não levanta olhos:
sente apenas o empedrado, que outros homens fizeram
com mãos calejadas, como são as suas.
 
Não é justo ficar na praça deserta.
Anda certamente na rua aquela mulher
que, rogada, havia de querer dar uma mão à casa.
 
  
 
 
cesare pavese
cidade no campo
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997






 

19 fevereiro 2020

cesare pavese / o tempo passa



Uma vez, um homem velho, sentado na erva,
esperava que o filho regressasse com o frango
mal esganado e pespegou-lhe duas bofetadas. Pelo caminho
– iam de madrugada por aqueles montes –
explicava-lhe que os frangos se esganam com a unha
– entre os dedos – do polegar, sem ruído.
Empanturrados de fruta, caminhavam debaixo das árvores
no fresco amanhecer e o rapaz levava
ao ombro uma cabaça amarelada. O velho
dizia que as dádivas da natureza são de quem delas precisa,
é tanto verdade que não nascem debaixo de telha. Primeiro olha-se
bem à volta e depois escolhe-se com calma a videira mais escura,
e sentamo-nos à sombra dela, sem bulir, enquanto não estivermos
                                                                                    atestados.

Na cidade há quem coma frangos. Nas ruas
não se encontram frangos. Encontra-se o velhote mirrado
– é tudo quanto resta do outro homem velho –
que, sentado à esquina, olha para quem passa
e, quem quer, lança-lhe duas moedas. Não abre a boca
o velhote: estar sempre a falar faz sede
e na cidade não há tonéis entornados,
nem em Outubro nem nunca. Há a grade do tasco
que cheira a mosto, especialmente à noite.
No Outono, à noite, o velhote caminha,
mas já não tem a cabaça, e as portas defumadas
dos tascos expelem bêbados que falam sozinhos.
É uma gente que só bebe à noite
(pensam nisso logo de manhã) e assim se embebeda.
O velhote, em rapaz, bebia com calma;
agora, só de o cheirar, treme-lhe a barba:
por fim, mete um pau entre os pés dum bêbado
e derruba-o. Ajuda-o a levantar-se, esvazia-lhe os bolsos
(ao bêbado às vezes resta-lhe qualquer coisa),
e às duas expulsam-no também a ele
do tasco cheio de fumo, pois canta, pois grita
e que quer a cabaça e deitar-se à sombra das videiras.


cesare pavese
cidade no campo
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997





07 dezembro 2019

cesare pavese / oficio de viver



3 de Fevereiro de 1941

Que existe afinal, na minha ideia fixa de que tudo consiste no secreto e amoroso «em si», que cada criatura oferece a quem a sabe penetrar? Nada, porque esta amorosa comunhão nunca a pude realizar.

No fundo, o segredo da vida é fazer como se tivéssemos o que mais dolorosamente nos falta. O preceito cristão está aqui inteiro. Convencermo-nos de que tudo foi criado para o bem, que a fraternidade humana existe – e se não é verdade, que importa? O conforto desta visão consiste em acreditar-se nela, não no facto de que seja real. Porque se acredito, se tu, se ele, se eles acreditam, tornar-se-á verdadeira.





cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004





17 abril 2019

cesare pavese / civilização antiga




É verdade que, ao olhá-lo, o dia não treme. E as casas
estão firmes, plantadas nas calçadas. O martelo
daquele homem sentado repica numa pedra
enterrada na terra mole. O rapaz que fugiu
de manhã ignora que aquele homem está a trabalhar
e pára a olhar para ele. Na rua não se trabalha.

O homem está sentado à sombra que cai do alto
duma casa, mais fresca que a sombra duma nuvem,
e não devolve o olhar, pica a pedra, alheado.
O repicar da pedra chega longe
no empedrado que o sol sombreia. Não há
rapazes nas ruas. Ele é o único
e repara que os outros são homens ou mulheres
que não vêem o que ele vê e passam rápidos.

Mas este homem está a trabalhar. O rapaz olha para ele,
hesitando à ideia de que um homem trabalhe
na rua, sentado como se fosse um pedinte.
E também os outros que passam, parecem absortos
em qualquer coisa que têm de concluir e ninguém olha
para trás ou em frente, a todo o comprimento da rua.
Se a rua é de todos, há que a gozar
e não fazer outra coisa, olhar à volta,
à sombra ou ao sol, apanhar a fresca.

As ruas escancaram-se como uma porta,
mas ninguém mete por elas. Aquele homem sentado
nem sequer se apercebe, como se fosse um pedinte,
das pessoas que de manhã vão e vêm.



cesare pavese
cidade no campo
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997







01 agosto 2017

cesare pavese / a arte moderna



12 de Fevereiro 1942

A arte moderna é – na medida em que vale qualquer coisa – um regresso à infância. O seu tema eterno é a descoberta das coisas, descoberta eu apenas pode acontecer, na sua forma mais pura, na recordação da infância. Isto é o efeito da all-pervading consciência do artista moderno (historicismo, noção da arte como actividade auto-suficiente, individualismo), que o faz viver, a partir dos dezasseis anos, num estado de tensão – quer dizer, num estado que não é próprio à absorção, que não é ingénuo. Em arte, só se exprime bem aquilo que foi absorvido ingenuamente. Só resta aos artistas fazerem meia-volta e inspirarem-se na época em que ainda não eram artistas, ou seja, a infância.




cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004





26 fevereiro 2016

cesare pavese / paternidade



Homem só, diante do mar inútil,
À espera da noite, à espera da manhã.
As crianças vêm brincar, mas este homem
Não vê brincar nenhuma junto de si.
Grandes nuvens erguem um palácio sobre as águas
Que todos os dias desaba e ressurge, e põe cor
Nos rostos das crianças. Sempre haverá o mar.

A manhã fere. Sobre esta húmida praia
O sol rasteja, agarrado às redes e às pedras.
Ao sol nublado, o homem caminha junto
Ao mar. não olha as lentas espumas
Que sem descanso tentam escorrer na areia.
A esta hora as crianças dormem ainda
Na tepidez da cama. A esta hora, mulheres
Dormem nas suas camas. Estariam a fazer amor
Se não estivessem sós. O homem despe-se lentamente
E nu como as mulheres longínquas entra no mar.

Depois, à noite, quando o mar se encobre, ouve-se
O grande vazio debaixo das estrelas. As crianças
Nas casas tingidas de vermelho caem de sono,
Por vezes em lágrimas. O homem, cansado de esperar,
Ergue os olhos para as estrelas, que não ouvem nada.
A esta hora, há mulheres a despir crianças
E a adormecê-las. Também as há na cama,
Abraçadas a um homem. Pela janela escura
Entra um sopro rouco, e ninguém o escuta
A não ser o homem que conhece todo o desprezo do mar.


cesare pavese
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de ernesto sampaio
assírio & alvim
2001




15 outubro 2015

cesare pavese / paisagem I


(para o Frango)


Aqui no alto, deixa de haver culturas. São só fetos
e penedos nus e esterilidade.
Aqui já não serve para nada o trabalho. O cume está queimado
e a única frescura é a respiração. É uma grande fadiga
chegar cá acima: o eremita subiu até aqui uma vez
e desde então ficou-se por aí a recuperar forças.
O eremita veste-se com peles de cabra
e exala um cheiro almiscarado de animal e tabaco
que impregnou a terra, as silvas e a gruta.
Quando se põe a fumar cachimbo, longe das pessoas, ao sol,
se o perco de vista nunca mais o encontro, pois é da cor
dos fetos crestados. Vêm cá visitá-lo pessoas
que caem prostradas em cima duma pedra, a suar e a arfar,
e encontram-no estendido, com os olhos no céu,
a respirar profundamente. Um trabalho ele fez:
deixou crescer a barba, emaranhada, sobre o rosto encardido,
meia dúzia de pelos arruivados. E deposita os excrementos
num descampado, a secar ao sol.

As encostas e os vales desta colina são verdes e profundas.
Entre vinhas, os carreiros trazem bandos estouvados
de raparigas, vestidas de cores violentas,
que fazem festas à cabra e lançam gritos para a planície.
Às vezes entrevêem-se filas de cestos de fruta,
mas não sobem até cá cima: os camponeses levam-nos para casa
às costas, curvados, e voltam a mergulhar na folhagem densa.
Têm mais que fazer do que ir ver o eremita
os camponeses, sobem, descem, e dão-lhe forte na enxada.
Quando lhes dá a sede, bebem uma golada: com o gargalo da garrafa
de vinho na boca, erguem os olhos para o cume crestado.
A meio da manhã, pela fresca, estão já de regresso, arrasados
de trabalho desde o romper do dia, e se passa um pedinte,
toda a água que os poços deitem no meio das colheitas
é para ele, que a beba. Dizem piadas aos grupos de mulheres
e perguntam-lhes porque é que, ali com tanta colina,
não se põem a torrar ao sol, vestidas de pele de cabra.



cesare pavese
diversos nº.1
trad. carlos leite






16 junho 2015

cesare pavese / a imaginação humana é imensamente mais pobre do que a realidade



25 de Outubro de 1938

A imaginação humana é imensamente mais pobre do que a realidade. Se pensamos no futuro, vemo-lo sempre desenvolver-se segundo um sistema monótono. Não pensamos que o passado é um multicolor caos de gerações. Isto pode também servir para nos consolar dos terrores causados pela «barbárie técnica e totalitária» do futuro. Nos cem anos mais próximos poderá produzir-se uma sequência de, pelo menos, três momentos, e o espírito humano poderá, sucessivamente, viver na rua, na prisão e nos jornais.

O mesmo se pode dizer do futuro pessoal.



cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004




07 abril 2015

cesare pavese / a velhice – ou a maturidade…



6 de dezembro de 1938

A velhice – ou a maturidade desce também sobre o mundo exterior. A rígida e transparente noite invernal, que desenha as silhuetas das casas num céu que espere a neve, tocava outrora o coração e abria um mundo de angústia heroica.

Com o tempo, não é necessário movermo-nos no mundo exterior para vivermos a angústia que ele provoca: basta um rápido aceno, saber que existe e existe em nós, e esperar um mundo inteiramente feito de vida interior, que adquiriu agora a novidade e a fecundidade da Natureza. A maturidade é também o seguinte: não procurar fora, mas deixar que fale, com o seu ritmo (que é o único que conta), a vida interior. Daqui em diante, o mundo exterior é material e pobre perante a inesperada e profunda autoridade das recordações. Também o nosso sangue e o nosso corpo amadureceram e ficaram impregnados de espiritualidade, de ritmo largo.

Renasce, como corolário, o antigo pensamento de que o génio é fecundidade ─ oitenta tragédias, vinte romances, trinta óperas, etc. porque o génio não é descobrir um tema exterior e dar-lhe um tratamento literário brilhante, mas conseguir finalmente possuir a nossa própria experiência, o nosso próprio corpo, as nossas próprias recordações, o nosso próprio ritmo ─  e exprimir, exprimir este ritmo, fora dos limites dos enredos, da matéria, na perene fecundidade de um pensamento que, por definição, não tem fundo.

A juventude não tem génio e não é fecunda.


  

cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004




19 janeiro 2015

cesare pavese / last blues, to be read some day



Foi só um flirt
e sabias, claro -
alguém foi ferido
há muito tempo.

Mas nada mudou
o tempo passou -
um dia chegaste
um dia morrerás.

Alguém morreu
há muito tempo -
alguém que queria
mas não sabia.

11 de abril de 1950


cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997



22 setembro 2014

cesare pavese / antepassados




Estupefacto com o mundo, aconteceu-me uma idade
em que desferia murros no ar e chorava sozinho.
Ouvir discorrer os homens e as mulheres
sem saber que responder dá pouca alegria.
Mas também essa idade se foi: já não estou só
e, se não sei responder, passo bem sem isso.
Encontrei companheiros ao encontrar-me a mim mesmo.

Descobri que, antes de nascer, vivi
sempre em homens sólidos, senhores de si,
e nenhum deles sabia as respostas e não perdiam a calma.
Dois cunhados abriram uma loja — a primeira fortuna
da nossa família — e o de fora era sério,
calculista, sem piedade, mesquinho: uma mulher.
O outro, o nosso, na loja lia romances
— para uma aldeia isso era muito — e os clientes que entravam
ouviam declararem-lhes, em frases concisas,
que não havia açúcar e sulfato também não,
que estava tudo esgotado. Aconteceu mais tarde
que este último deu uma mão ao cunhado falido.
Ao pensar nesta gente sinto-me mais forte
do que a olhar para o espelho enchendo o peito de ar
e os lábios forçados num sorriso solene.
Houve um avô meu, em tempos remotos,
que se deixou enganar por um dos seus homens da lavoura
e então sachou ele próprio as vinhas — no Verão —
para ver um trabalho bem feito. Assim
vivi sempre e sempre tive
uma cara honrada e paguei tudo a pronto.


E na família as mulheres não contam.
Quero dizer, as nossas mulheres estão em casa
e dão-nos à luz e não dizem nada
e não contam para nada e não as recordamos.
Cada mulher infunde-nos no sangue uma coisa nova,
mas todas elas se anulam nesse trabalho e nós,
assim renovados, somos os únicos que perduram.
Somos cheios de vícios, de tiques e de horrores
— nós, os homens, os pais — houve um que se matou,
mas uma só vergonha há que nunca nos tocou,
jamais seremos mulheres, jamais sombra de ninguém.

Encontrei uma terra ao encontrar os companheiros,
uma terra má, onde é um privilégio
não fazer nada, a pensar no futuro.
Porque o trabalho só não nos basta, a mim e aos meus;
sabemos rebentar-nos a trabalhar, mas o grande sonho
dos meus pais foi sempre um nada fazer de machos.
Nascemos para vaguear por aqueles cerros,
sem mulheres, e as mãos cruzá-las atrás das costas.



cesare pavese
diVersos n° 1
trad.carlos leite               
edições sempre em pé
1996