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22 agosto 2023

fernando lemos / princípios

 
 
no princípio era o silêncio sem rosto apenas vácuo
apenas vácuo obstinado raiz de tempo
não observado mas repleto de plumas
névoa traçada no ponto mais sublimado
 
que da luz o pó colado noutro pó
em chamas intercaladas   respiração
boca-a-boca novos suspiros e bolhas
incandescentes de ardida saliva
 
recorte de canção em sílaba só
curta desenhada de inércia e traço
imenso com linha irreconhecível
de tantos cheiros anunciados na ânsia
 
a cor das plantas de arame seco    na
água feita de terra recuperada
para se ver o nada crescer no poente
como véu escuro de primeiro sombreado
 
 
1998
 
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019



10 novembro 2022

fernando lemos / falam de pão

 



 

Falam de pão
mas comem pão
falam de suor mas tomam banho
falam de amor mas traem amigos
falam de injustiça
falam de justiça
mas roubam
falam de tudo
mas fazem tudo
 
falam mas não desistem
não pensam nem se recusam
ninguém se demite
daquilo que é
 
entretanto as coisas acontecem
embora poucos olhem para elas
 
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




13 agosto 2022

fernando lemos / o meu peito é um tecto

 
 
O meu peito é um tecto
Quando os olhos se me fecham
pouso as mãos ao acaso do meu túmulo
Mapa dos meus sentidos
 
Do amor tenho tudo
a dor e o ódio
Há um sossego em saber-me
com uma morte guardada no bolso
 
Do passado fica-me um golpe
que não é mortal mas derrama
todo o seu sangue nos forros da roupa
Estou apertado
 
Estou apertado e suspenso
O meu peito é um tecto
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




20 outubro 2021

fernando lemos / espero uma revolução

 
 
Espero uma revolução
para dormir
aguardo êsses dias de glória
para me recusar a tudo
silêncio meu
será de balas
seja noite sejam forradas as noites
de balas
 
quando caírem as grandes bombas incendiárias
farei uma leve mudança na cama
 
quero acordar com os clarões do incêndio
sair para a rua barbeado
de camisa lavada
fazer a pé por cima dos cadáveres
quentes o indiferente percurso
do falso cotidiano
preciso de uma revolução
preciso dormir
preciso não mudar de ideias
 

 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019






02 junho 2021

fernando lemos / hoje

 
 
Hoje
qualquer criança
podia ser dona do mundo
ao rasgar
este silêncio
de pele
que envolve a paisagem
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019








14 janeiro 2021

fernando lemos / o mar cresceu

 
 
I
 
o mar cresceu
dois dias
todos os barcos
foram poucos
para transportar a dúvida
 
 
II
 
a morte ouviu
toda a nossa conversa
 
 
III
 
esta minha viagem não passa de mim
o cenário repete-se
nesta minha viagem
cenário não passa de mim
 
esta ideia fica
dói-me
não passa de mim
há uma viagem
em volta de mim
estou acordado
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




04 setembro 2020

fernando lemos / nos meus pensamentos



nos meus pensamentos sempre
as palavras lutam duas a duas pela verdade

palavras se metem dentro
de outras palavras querendo ideias

sou uma caixa de vários lados
com vários cantos
com duas sombras

uma escura que nasce da clara
outra clara que nasce da escura

a luz cintila e a sombra dorme
a sombra estatela-se e a luz ergue-se

nasce cada palavra dentro de outra palavra


fernando lemos
poesia
porto editora
2019






24 janeiro 2020

fernando lemos / veneno



Veneno
ou uma viola branca
ventre ou duas luvas
brancas

vidro
ou eu abatido na cama

domingo
ou eu recebendo à bala
os vizinhos

tu
ou eu cego de te inventar

eu
ou apesar da fúria
sombra em pedaços
cintilantes


fernando lemos
poesia
porto editora
2019








22 novembro 2019

fernando lemos / ambições



Ambições
não tenho
mas alguém corre sozinho
nos meus sonhos

amargo  medíocre
esta mensagem
torpedos
que alcanço
garantias não tenho
mas alguém
se encontra sozinho
nos meus sonhos


e é tudo


fernando lemos
poesia
porto editora
2019





09 setembro 2019

fernando lemos / dois horizontes




Dois horizontes
duas árvores
dois corpos

no meio um arame
no meio do arame
um frio
por cima de tudo
uma tempestade
duas nuvens
dois clarões
a iluminar os dois corpos

no meio um arame
no meio do arame
um frio

no meio do frio
o medo



fernando lemos
poesia
porto editora
2019





15 agosto 2019

fernando lemos / quando um dia estiver morto



Quando um dia estiver morto
não me chamem assim de morto
mas digam que fui um fraco
que lutei
Não digam que acabei
mas que estou iludido
Que fiz desertos com túmulos
praias geladas ao passear doentes

Digam que está ali comigo a cor
o ar e a posse
Que fui igual e traído
Que acordei dentro do vulcão
rompi manhãs de veludo
feito um rato
Que confundi papel com outro papel
Que troquei a mão de alguém
por outra mão
o sorriso por um desejo
a cerimónia por acto amoroso
Que troquei as horas por frases inocentes
e as rosas por actos gratuitos

Digam que cruzei mal as linhas
que rasguei papéis de valo
e soquei mulheres
Que amei os velhacos
fui traído com amor
raiva e convicção
Que perdi oportunidades
e das melhores
Que não conheci nem a lei
nem o cheiro do crime
Que abusei da minha força
na fraqueza dos outros
e da fraqueza também

Digam que fui ridículo
e até brilhante
Podem dizer que não roubei
nem fui culpado nas guerras

Quando morrer não digam

Não me chamem assim de morto




fernando lemos
poesia
porto editora
2019








05 maio 2016

fernando lemos / insónia



                                  à Manuela Pilar


O raio fulminou-me os berlindes
        agora invejo os olhos dos mortos
espreitando no telhado da missa
o caminho que seguem os porcos

Risco no céu com uma vara
nomes iguais a qualquer cão
Para a verdura dos séculos fica
uma mensagem de indignação

Os vivos têm berlindes
mas não os querem usar
Bolsos cheios
fatos de cerimónia pretos
nos seios rectos da criada de mamar

Na virgindade de que são feitas as gerações
a par das locomotivas quero
quebrar meus nervos na ânsia que me faz correr
vinagre nas feridas

Hei-de criar uma nova forma de cansaço
gemer a sorrir de medo
no arame que assobia
dançando larguras no espaço

Sabe bem ouvir o silêncio
e a morrer nele a cada instante
ficar na argola de guardanapo
guardado inconstante

Se quisesse que a alegria me desse
um modo simples de ser
não te ouviria no pêndulo que vem
às duas três horas bater

O pêndulo que acelera
vai e traz a tua voz
e morder me desespera
morder a imagem de nós

E acredito que amanhã
torne a ouvir mesmo os ruídos
entalado pelo sol pela noite
com casacos de ratos aos gritos




fernando lemos
teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004




06 março 2016

fernando lemos / cepti-cidade


           Ao Augusto Figueiredo


Em 1953
     atravessar a avenida só
para do outro lado
ficar a falar de Deus como se o conhecêssemos…
Ouvir cantar pneus
e continuar a supor que são sempre para os outros
todos os Pschitt! ignorantes
Fumar um cigarro entre duas dificuldades
como se fossem dedos
Ir a Paris dizer:  – Que bem!...
e voltar por entre tambores cardíacos

para uma cave de cobras e lagartos

a verificar que surge sempre

um iô-iô antes de uma guerra…

  

fernando lemos
teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004



21 junho 2015

fernando lemos / dia de descanso



Hoje reservo o dia inteiro para chorar
É o domingo decadente     em que muitos
esperam pela morte de pé
É o dia do sarro que vem à boca da mediocridade
circular dos gestos que andam disfarçados de gestos
dos amores que deram em estribilhos
das correrias pederásticas para o futebol em calções
mais o melhor fato e a mesquinhez nacional dos 10%
de desconto em todo o vestuário

E choro     choro     porque a coragem
não me falta para tudo isto e assisto
na nega de me ceder ao braço dado

Precisarei de um cansaço mas
lá estavam espertas
as mil e não sei quantas lojas abertas
para mo vender!

Mas hoje é domingo
Lá está o chão reluzente de martírio
e nem já o sonho me dá de graça o ter por não ter
já nem o amor que suponho me dá o sonho de ser

E choro de coragem     isto é
as lágrimas hão-de cair secas nas minhas mãos
Falo cristalinamente sozinho
procurando entre as paredes e as varandas que vão cair
algum acaso     isto é
o eco de qualquer drama vazio

Espero como quem espera
o momento de posse entre dois ponteiros
de torneira em torneira nas súplicas febris
em que me trago aquecendo as mãos nas orelhas
para as não cortar em gritos
Espero e entretanto o mundo não se cansa
de me dar drogas para dormir e criar
novelos de lã à volta do coração
Não me lastimo     grito
Quero que estas correntes da boca se tornem úteis
e não ficar pr`aqui moldado estátua
em verdete de ser chorado
A tropeçar onde não há perigo
com calçado duro a pisar as nuvens
neste tão estreitado mundo

Choro hoje o dia todo e lembro-me o que disso
podem pensar os homens das ideias revolucionárias e choro
choro de coragem e para os microfones da revolução
As lágrimas e a revolução são como a morte de cada um

Cá do meu alto não de desce por escadas mas por desalento
por amor ao chão da terra que me pisam

e choro neste dia burguês fazendo cá a minha revolução
alheia às tais guerras de papel químico

Espero sem esperança mas certo
do que espero como de saber que um homem
não chora     e choro

Choro hoje porque reservei o dia inteiro para chorar
porque é domingo e o que espero não é a morte de pé
talvez a coragem de que o mundo não esteja certo

Uma vez era ainda pequeno
chorei ao ver um prédio desabitado
Moro nele mesmo aos domingos e rio-me
das revoluções que ameaçam de pôr ou tirar-me as janelas
Sei que nada adianta
Vi o prédio desabitado era eu muito pequeno
Nele me reservo hoje o dia todo à liberdade de me dar
ao choro da coragem de esperar

E espero porque mesmo que o  mundo fique desabitado
um grito afinal terá assim o seu eco

Enquanto durar este domingo     vou chorar gradualmente
até que a noite me venha
cobrir o corpo de abafo quente

Então sairei à procura da prostituta cega
para lhe contar junto ao peito
como as pessoas se comportam aos domingos


fernando lemos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




30 agosto 2014

fernando lemos / mudançar



Repor
na planta da cor brancura
em pedra solicitada

Reler
por vacilação das sílabas
em escuridão afundada

Rever
por olho areado com águas
a imagem contaminada

Reter
no músculo oxigenado vaso
areal terra aterrada

Resistir
ao cântico suado no temor
a evolução revoltada

Reaver
do padre eterno esquecido
fé febril equivocada

Rematar
pontilhados no voo manual
asa de vazio blindada

Reacordar
quando o tempo do morto é
vício pele reciclada

Recomeçar
linguajar contínua marcha
vivente reinventada.



fernando lemos
cá & lá: poesia: antecedido de teclado universal
in-cm
1985



05 dezembro 2012

fernando lemos / não há tempo




Não há tempo
        há horas
Não há um relógio
        há
        hábitos que
me habitam

O poema dói
o ponteiro corta
a hora que queima
a morte simula

respira
para não me distrair



fernando lemos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998



11 fevereiro 2009

fernando lemos / as novas leis










Atrás de qualquer porta
está sempre o mar alto que me espreita
Ou então a capa em que o vento abate
a dúvida ou a suspeita

Linhas rectas seguem cidades
quebrando fazendo nós
quando um homem lança mão num estrado
de abelhas completamente sós

Criaram-se novas leis
novos modelos de calçado
Fotografias com cores
décors do patriarcado

Mas as facas de cortar fruta
que correm a praia de extremo a extremo
dançam em pontas sobre o pequeno
E as mães que já não sabem
fazer as suas contas
deitam-se ao mar pelo que vêem
e julgam-no sereno

Saem dos astros pés das ondas mãos
a taparem os rostos os medos
As fardas que andam nuas
sobram armas lugares amenos

O mundo não previa tanto
e esgotou-se a lotação
Vão pelos canos correndo pardais cegos
como convém à perseguição

Criaram-se novas leis
há pânico pelas nossas varandas
nascem entretanto árvores nuas
tantas
Mas os dentes ainda são de pedra
apesar da nova lei que os não respeita
Embora a máquina de fazer peças para novas peças
seja o mar alto que atrás da porta me espreita.







fernando lemos
teclado universal
morais
1963







07 janeiro 2008

dores alternadas



à Irene que oiço no amachucar
de sedas que me vão lembrando







Eu penso em ti mesmo
que à tua volta nasçam sementes
Porque sou pelo feitio
de tremenda agudeza como testemunha
de certos males
o percurso idealizado pelo punhal
a ferida aberta para o receber a todo o instante


Eu penso em ti inevitavelmente
como comboios atropelando pássaros
Dobrando sobre o joelho
os pontos cardiais
a quebrar a vingança


Porque sou neste espaço de solidões
o bafo de inventar imagens
na vidraça da janela
(Mas todas as que surgem são já conhecidas e insistentes)


Se não puder mais que pensar em ti
deixo que se me gaste o pensamento
a reduzir sentido por sentido
letra por letra o alfabeto o só
com que nos entendemos


Porque sou o desejo de voltar a andar
pelo colo das pessoas crescidas
a espreitar-lhes para dentro das orelhas


Arrecadar-te-ei sobre a minha infância
que não foi estudada
Mesmo que as rotas perdidas para me cruzarem
se encontrem
Mesmo que tenha de esquecer o vidro
para dobrar o fogo



Porque sou o percurso banal
de todos os pensamentos
feito à conta de esquecer
os que de pensamento se tornaram irrealizáveis


E se te tirarem a nossa máscara?


Guardarei o molde na parede que se me esvai
no sabor a lagos distantes com peixes esquecidos
e penso em ti


Porque sou a lei de puxar as crianças
do recreio do céu
e de desastrado piso-as


Estou a poisar na testa selvagem de qualquer animal
e mostrar ao menos que não há rendição
Ando de gatas procurando o mundo
o equilíbrio de me mascarar de sombra
e partir do momento em que ela passou
a andar de pé e a tomar conta de mim


Onde quer que seja guardarei
metade de tudo sempre que
acreditando que a outra metade nunca

Quis soprar o pó e apaguei
E sou ridículo por adivinhar-te
nos minutos que gastam pó pelas minhas janelas


Cá do colo ouço a espreitar-te
e vivo a monte por entre tantas frinchas de liberdade
nas janelas abertas como orelhas
por onde passam os teus passos
perseguindo-te novamente


Faço secar as flores venenosas
estendidas num vai-e-vem estreito como a guerra
Fico através dos instantes que passam sem mim
com o gosto de esforço inútil
a mastigar areia


Penso em ti inevitavelmente
e sou a faca clandestina
que fez da cidade fatias


Quiseste apagar a vela e desfizeste
o pó que juntei para o meu destino!


Uso a palavra amor
para que ele me chame à morte.












fernando lemos

teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004