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23 junho 2022

eugénio de andrade / a domingos peres das eiras, com umas violetas

 



 
Há nomes que a nossa memória recusa guardar sozinhos. Não é que não tenham em si mesmos sortilégio bastante para atravessarem a morte desamparados, mas apenas porque a nossa imaginação lhes deu um rosto de homem, numa idade em que, sem um rosto, nenhuma imagem, por mais próxima ou menos degradada, se tornaria dócil e convivente. Junto dos muros calcinados de Tróia, como poderemos escapar à feroz sedução da figura de Aquiles? Até à roda dos meus vinte anos, o Porto e um «bom cidadão do lugar» estavam tão religados no meu espírito, que eu amava a cidade só através de um rosto – o de Domingos Peres das Eiras. Naquelas falas, que Fernão Lopes pôs na sua boca, era a masculina música das palavras sem vileza que eu escutava, e o seu rosto, de que nenhum de nós conhece as feições, uma das poucas imagens de hombridade portuguesa, que eu juntava a outras, num tempo em que a juventude não cessa de crescer. Quem não se recorda das palavras com que responde ao enviado do Mestre de Avis? «Eu digo por mim e por todo este poboo que aqui esta, que nos somos prestes com boa voomtade de servir o Meestre, nosso Senhor, e fazermos todo o que ell mamdar por seu serviço e deffemssom do rregno. Ca já ell seeria huű estranho que nos nom conheçeriamos, e quamdo sse ell desposesse ataaes trabalhos e perigoos por nos deffemder e emparar, nos o serviriamos com os corpos e averes; moormente seer elle filho delRei dom Pedro como he…» Ainda hoje não consigo ler estas linhas sem uma leve agitação nas águas que em mim parecem mais mortas, e, ainda hoje, o que amo nesta cidade é essa música primeira que, alguns séculos depois, ressoaria na prosa de Herculano. Domingos Peres das Eiras é o seu nome – dizia eu aos amigos, quando visitei o Porto pela primeira vez, num entardecer já distante, ali, no terreiro do Convento da Serra, fascinado por todo aquele casario que se derramava às golfadas no Douro, as fachadas roídas pelos dias húmidos e viscosos, onde uns restos de sol fulguravam nas janelas e nos telhados, e as torres mais hirtas pareciam recuar na noite, que principiara a cair. – Precisas de ler Camilo – responderam-me. Eu calei-me: não era forte em Camilo. Pensava no espírito tão genuinamente popular desta terra, a que se encontrava vinculada a mais alta das suas virtudes, a sua fronderie liberalista, que conquistou o privilégio de banir a nobreza dos seus muros e não permitiu ao Tribunal do Santo Ofício celebrar aqui mais que um só auto-de-fé. Que me importava a mim, naquele momento, o que dissera Camilo do Porto? Poderia alguém, Camilo ou quem quer que fosse, negar aquela beleza desgrenhada e áspera que tinha diante dos olhos? Só mesmo quem fosse cego de nascença.

Fiquei então por cá dois ou três dias. O Ernesto mostrou-me o mar da Foz, a Cantareira, o «cabedelo de oiro», que Raul Brandão diz ter conservado sempre na retina; com a Sophia passei uma tarde nos jardins abandonados da Quinta do Campo Alegre, eu próprio abandonado ao som da sua voz que se misturava com o jorrar das águas e o cheiro resinoso e marítimo dos pinheiros; o Aires levou-me de corrida a ver, não o coração de D. Pedro, como sugeria o motorista do táxi, mas o negrilho da Cordoaria, as tílias do Palácio, as magnólias de S. Lázaro, o jacarandá e o cedro glauco do Largo de Viriato; ao Eduardo fiquei a dever o Pousão do Palácio dos Carrancas e a Torre dos Clérigos com versos de Pascoaes à mistura. Quanto a Camilo, só o li – e mal é certo! – muitos anos depois: quando voltei ao Porto para ficar. Quem o nega? Camilo viu do Porto a outra face, a do «burgo antigo com a sua dinastia de comerciantes», que o Eça também lhe descobre, sem contudo lhe negar o que lhe negou Camilo – a honradez: «O bom portuense se quiser ter foros de cidadão terá de provar que o bisavô veio para a cidade com uma broa e meio presunto no saco, escarranchado sobre dois costais de castanholas; que o avô teve balcão de fazendas brancas e foi irmão do Santíssimo, irmão benemérito da Misericórdia, e vinte anos a fio vestiu balandrau para pegar ao andor de Nossa Senhora. Item, que o pai era, sem vergonha do mundo negociante de quatro portas, afora os postigos por onde passava o contrabando; que sua mãe fora uma gorda e boa mulher que remendava, passajava e sabia mesmo deitar uns fundilhos nas calças do marçano e nunca na vida tivera pacta com letra redonda.» Era isto o Porto, na juventude de Camilo? Se pensarmos no pendor caricatural e polémico do autor de Amor de Perdição, nas circunstâncias em que tais palavras, e outras, e outras, foram escritas (poucas vezes, como aqui, o verso de Pessoa «Compra-se a glória com desgraça» terá tido tanta ressonância), poder-se-á objectar que a imagem está um tanto ou quanto desfocada; ou se preferem: não seria o provincianismo apelintrado, que se despeja inteiro na cidade da Virgem, afinal, característica de todo o país? Do país…, do país…, que pensava Camilo? Oiçam-no! «Quando se fará ao menos inodora esta cloaca de Portugal?» Azedo, agastado, doente, «escouceado» numa terra que lhe não perdoava o sarcasmo, como a Garrett não perdoou a ironia, Camilo ainda pôde, contudo, escrever a um amigo: «Estou triste. Aproxima-se a hora de deixar para sempre esta terra, onde, a par de muitos dissabores, experimentei alegrias instantâneas. Não é da gente que tenho saudades. É de não sei quê…» São realmente muito tortos os caminhos do amor.

Mais do que o sarcasmo de Camilo, que disfarçava, ao fim e ao cabo, uma ternura por esta gente metida nos seus «tamancos estóicos» (se assim não fora, como explicar que lhe tenha mordido e remordido o coração?), surpreende o desprezo de António Nobre, nascido na Rua de Santa Catarina, educado em colégios da Rua Formosa e da Rua de Cedofeita, que guardará o seu amor para os subúrbios da cidade. O dandy das praias de Leça tinha a sua opinião formada, e a sua opinião era a de Eça de Queirós, como comunicará de Paris a Alberto de Oliveira: «Jesus! Que terra! Verdadeiramente inabitável!» Pobre moço, coitado! Não tardaria em saber que não só o Porto, mas todo o planeta, é inabitável. E acabará – oh, má sina do poeta! – os seus dias ali na Foz a murmurar: «Que lindo que isto é!» Que descanse em paz. Ámen.

Aquele que foi o irmão maior de Nobre – «Garrett da minha paixão…» – será com o Porto bem mais generoso. Para lá do «grande aldeão» que lhe atirou à cara, teceu ao seu exemplar espírito de liberdade o mais belo hino de que esta terra se pode orgulhar, além de ter lavrado ainda, «em recta pronúncia e frase de brasão», um decreto em que todos os seus títulos de nobreza lhe são confirmados por despacho régio, e de lhe reformar as Armas, onde «lhe coloca, em escudo de honra, no meio, o coração de D. Pedro…» Nem assim o «leal, paciente e bom povo» da sua cidade lhe perdoou os versos de juventude – Garrett nunca será eleito deputado pelo Porto, como tanto ambicionou. Em carta a Gomes Monteiro, datada de 23 de Junho de 1838, escreverá: «Quanto a mim, sem falsa modéstia, nem escrúpulo algum, lhe digo que trago atravessado na garganta, o não ser eleito pela minha terra…» Em 1840, ainda se queixa ao mesmo amigo: «Eu sou do Porto, dói-me se não me elegerem os meus patrícios porque em verdade mereço-lho.» Em verdade, merecia-o, e o Porto perdeu uma ocasião única em demonstrar que não era «aldeão» ao mais civilizado dos seus filhos.
 
A grande trindade poética que lavra, nesta pedra escura, o perfil seguro do Porto – Fernão Lopes, Garrett e Camilo – leva fatalmente à cidade uma pessoal visão de mundo, o seu génio próprio. O Porto de Fernão Lopes é quase legendário: heróico e honrado; o de Camilo, grotesco e dramático; o de Garrett irónico, pitoresco e sentimental. São três tempos (em duplo sentido: histórico e musical) do seu carácter que, embora esquematicamente enunciados, nos permitem algumas aproximações. A cidade viril de Fernão Lopes é ainda a de Herculano, Ramalho, Jaime Cortesão e Miguel Torga; Raul Brandão, Pascoaes e Agustina estão, de algum modo, na continuação do pessimismo de Camilo; de Garrett parte, dessorada, perdido por completo o seu impenitente humor, toda uma toada que de Júlio Dinis e António Nobre vem desaguar em tanta loa tacanhamente regionalista e deprimente. Isto para falarmos apenas de quem mais se debruçou na alma destas pedras, bem pouco transparente, como se vê.
Não sei como é que a palavra se insinuou: convenhamos que vem pouco a propósito. A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma clarabóias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real. Para as bandas de S. Lázaro, as ruas estão coalhadas de silêncio. Os passos de quem regressa tarde a casa são raros, até os mais leves se ouvem à distância. Na noite alta, o repuxo do jardim tem a nitidez de um coração muito jovem. Fora as magnólias, não há árvore com folha. Os bancos estão desertos – os trolhazitos que por aqui se aquecem ao sol, à hora do almoço, devem ter adormecido nalgum canto dessas casas em vias de construção, que há um pouco por toda a parte. Dormem enrolados no friínho que principia a rondar. Os cafés fecham as últimas portas. Saem os retardatários um pouco aos bandos, quase todos jovens. Barulhentos, sem pressa, encaminham-se para a Batalha. Um automóvel, rápido; outro; outro ainda. Um dos moços assobia. As palavras da canção ecoam-me na cabeça:
 
          If you’re going to San Francisco
          be sure to wear some flowers in your hair…
 
Param a olhar os cartazes de um cinema. São realmente muito novos e, como poldrinhos amedrontados, juntam-se, empurram-se uns aos outros, aos berros: – Não viste nada, pá, quem viu fui eu! – É um adolescente de camisola alta, os cabelos à Shelley, as calças cingidas. Que teria ele visto, que deixou de assobiar? A Mónica Vitti entrar no Hotel da Batalha? O rei Édipo atravessar a praça pela mão de Antígona? Os Beatles empoleirados na estátua de D. Pedro V? Ou o rosto que eu procurava na noite – o rosto sem feições conhecidas de Domingos Peres das Eiras, escoando-se, solerte, pela Rua de Cimo de Vila? Sigo-lhe a sombra, distanciado, e logo lhe perco o rasto. Talvez tenha entrado numa daquelas casas estreitas e encardidas, de letreiros pendurados no portal, anunciando «Dormidas» em letras vermelhas. De uma ou outra janela exígua, uma luz bafienta escapa-se, a custo, entre as portadas espessas. Inesperadamente, ouvem-se uns risos meio aloucados de rapariga, o ranger de uma porta que hesitou em abrir-se , logo uma voz muito frágil, rasteirinha: – Fica ainda um pouco, Miguel. – Eis a Rua Chã, a Rua Chã das Eiras, como outrora se dizia. Aqui, dentro de portas, a mais triste das máscaras de Eros fascinava ainda alguns solitários. Dois soldados olhavam as vidraças foscas. Um velhote aproximou-se a cantarolar, pediu-me um cigarro. – Contente, hem?! – Pois…, a vida são dois dias. – Ou menos, homem. E donde tira você a alegria? – Olhe, do sol… – O velhote fitou-me. Não posso jurar que sorrisse, mas os seus olhos brilhavam no escuro. Ainda me ocorreu perguntar-lhe: – E quando chove? E olhe que chove muito no Porto! – Mas fiquei calado. Um homem que arranca alegria do sol tem direito a ser respeitado. O velho sumiu-se por uma viela abrindo em arco. A Sé via-se já de flanco. No empedrado do terreiro, os passos crepitavam. Só o barulho das motorizadas conseguia atravessar tanto silêncio. As colinas de Gaia estão cheias de luzes coadas por uma neblina rala que jamais se extingue. Não há nenhuma cidade, assim, que subitamente não se torne secreta. No rio, junto ao cais, distinguiam-se dois ou três barcos de carga, no meio do tremor mercantil dos anúncios luminosos. No negrume dos telhados, quebrado nas ruas mais próximas quase só pela brancura de uns lençóis a secar às janelas, rompem as agulhas das igrejas – lancinantes. Quatro ou cinco mimosas trepam miudinhas. É outono, creio que já o disse: a terra cheira bem. No Carmo já deve haver violetas à venda. Preciso passar por lá amanhã: tenho a quem enviar um ramo. A noite embaciara à medida que crescera, mas vislumbrava-se ainda, lá ao fundo, uma torre esgalgada. O assobio recomeçou, não sei onde, talvez na Rua Escura ou na de S. Sebastião. Mas agora era outra a música que tinha dentro de mim:
 
          «Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
          assim alta,
          assim de névoa acompanhando o rio.»
 
 
 
eugénio de andrade
daqui houve nome portugal
prefácio
editorial inova
1968




 


13 maio 2022

gil t. sousa / fosse assim

 
fosse assim:
dunas de linho
onde me perdesse
 
só o sal
e o violino do mar
no corpo antigo
 
vento de luz
e o sol longínquo
da infância
 
tão puro azul
como água
secando na lâmina
 
do tempo
 
 
 
gil t. sousa




15 agosto 2021

gil t. sousa / e eu, que sempre vi a luz

 
 
 
e eu, que sempre vi a luz
como um elemento de revelação
atento nestas mãos abertas
e anseio por tudo o que nelas
se esconde
 
espero tempestades e
veredictos sobre a antiquíssima
eternidade
persigo a sombra do rumor
que se semeia a si próprio
 
no campo da noite
e nos espera de faca na mão
sempre que o coração tropeça
ou a voz se perde
num corpo tão antigo
 
como o frio, escavando
poços por entre os pés
cortando as linhas de água
do nosso deserto
mais intimo e extenso
 
tinta queimada, esta pele
tambor surdo e cego
rente à estrada abandonada
do passado, rente ao mar
que nos salgou o desejo
 
 
 
gil t. sousa




 
 

22 setembro 2020

gil t. sousa / kodachrome



era assim
como curva de rua alta
ar de coisa presa
à água

tinha mãos
de vento pequeno

e o seu braço no muro
era a sombra
do mundo

a luz desvairava
na cal branca
mas na sua pele
não



gil t. sousa






14 agosto 2019

gil t. sousa / aguarela




a beleza da árvore
que finge seguir o vento
quando ele passa

e os muros caiados
que guardam o sol
para quando nos falta

a água fresca
a respiração da janela larga
sobre o campo

e este caminho
que cresce tanto
até ser estrada

as mãos ainda abertas
para os frutos
e para as flores

os pássaros e o mundo
o tempo a rasgar-se
no corpo

no meu, no teu corpo




gil t. sousa
desertos






24 abril 2019

gil t. sousa / desertos


2-

da luz
nem sempre quis a
a verdade

tenho agora
vícios de deserto
e o coração

pede-me sombras curtas
não confio no vento,
esse pássaro louco

que despreza a cor
do alecrim
e da tâmara madura

estou cansado
e assisto de longe
à traição da primeira hora

já só escrevo na areia quente
o frio que não
posso guardar

mas danço
como o orvalho
de flor em flor

e agora
qualquer madrugada me serve
para despertar



gil t. sousa
desertos







16 janeiro 2019

gil t. sousa / água forte, poesia reunida


Para quem estiver interessado em adquirir o meu livro, a melhor maneira de o fazer é através do site da editora Urutau que o distribui para o Brasil e para a Europa. A tiragem não é muito grande e serão postos à venda poucos exemplares em algumas livrarias de Lisboa e Porto. (em Lisboa nas livrarias Snob, Poesia Incompleta e Letra Livre; no Porto na Livraria Poetria).


É muito fácil e muito mais cómodo, basta clicar na imagem.







:





15 agosto 2018

gil t. sousa / desertos





1-

à água
dávamos as mãos secas

os olhos
se a beleza nos tentasse

e esperávamos




gil t. sousa
desertos










30 maio 2018

gil t. sousa / instantes solares




manhãs inteiras
atados com cordas de luz

ao soneto solar
que inundava as pedras

os anjos à espera
de soltarem a voz

asas pacientes
tecendo nuvem a nuvem

castelos de céu
para onde, perfeita,

se ia amurar  
a solidão



gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014










15 agosto 2017

gil t. sousa / reviver



regressar
para que um tempo suspenso
possa tocar de novo as mãos
que tudo guardaram

na água parada
a educação das pedras erguidas
declamadas em margem

nas árvores repetidas
resgatar os olhos de então




gil t. sousa





24 fevereiro 2017

gil t. sousa / o erro de deus



esqueçamos então que a loucura
é hábil e que é pelo corpo que se escoa
o tempo

e que o corpo é um vento que
nos abandona e nos deixa sem nome
para o sangue, ou para as mãos

a nossa solidão é íngreme
como as grandes fragas negras
sob o voo dos pássaros – esse abismo
onde muito levemente os olhos se deixam
ainda chamar por outros olhos

e a eternidade desiste docemente
como se fosse um erro de deus



gil t. sousa





13 março 2016

gil t. sousa / os pianos órfãos



um bando de pianos órfãos
atravessava a neve

e deixava um rasto de ouro
no silêncio negro da tarde

velávamos os raros fios de sol
que nos teciam a melancolia

e partíamos ricos
dando-nos ao assalto das horas

livres e amantes


gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014



12 novembro 2015

gil t. sousa / passagem



e se nas mãos fechadas
as grandes portas se abrissem

e passasses tu
como este silêncio passa!



gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014




29 agosto 2015

gil t. sousa / seguíamos a água



seguíamos a água
porque a secura nos cercava
como um animal
quase louco

do alto de pedras antigas
avistávamos cidades
para onde partíamos
a todas as horas

metrópoles
de ventos eufóricos
que nos sopravam
a humanidade inteira

na forma
do grito e do olhar
e no incêndio infinito
do sangue

e eram tão poderosas
as palavras que sabíamos
tão nobres os silêncios
por onde elas espelhavam

e tão grande
era tão grande o coração
que as ouvia,
que as guardava

num secreto
para sempre!



gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014




22 julho 2015

gil t. sousa / onde mora o coração



ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração


gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014


24 março 2015

como se fosse na mesa dum café nos anos 70


Anos 70, muito jovem ainda. Partilhávamos os truques da resistência à ditadura fascista, espreitávamos o mundo pelas brechas do grande muro do fado, de Fátima e do futebol. Fazíamos o que podíamos para ler as grandes obras da literatura universal e conhecer o mundo oculto da ideologia. Comíamos croissants inebriados pelo cheiro da tinta no stencil denunciador dos crimes do fascismo. O pão quente era de madrugada à porta duma padaria de bairro. Líamos Herberto Helder, íamos ao Cascais Jazz, ouvíamos a grande música e tínhamos a certeza firme de que este país um dia seria melhor; limpávamo-nos do bafio das sacristias e livrávamo-nos da culpa da miséria. Nesse tempo as livrarias eram sítios onde se vendiam livros e os livros eram mesmo livros, os escritores mesmo escritores, os poetas mesmo poetas. E, pasme-se, os jornais eram mesmos  jornais  e os jornalistas eram mesmo jornalistas. Nesse tempo, Cultura significava instrução, saber e estudo.

Lembro-me da sensação de modernidade, de ar puro, e do modo tão novo de querermos ser portugueses assim, sentirmo-nos assim portugueses dessa maneira tão livre e tão criativa que se entranhava em nós depois de lermos “Os passos em volta”.  

Hoje, senti-me privilegiado por ter sido contemporâneo dum ser tão imenso, de ter podido conhecer a sua obra  no tempo exacto da sua criação e de poder testemunhar que, por causa dela, a minha geração, e muitas outras, trouxe a este país homens e mulheres muito melhores, muito mais justos e muito mais livres, numa maré libertadora que inundará com certeza a nossa eternidade como povo.

Sim, a grande revolução do século XX português foi a Poesia de Herberto Helder.     



gil t. sousa 



12 janeiro 2015

gil t. sousa / incerto


que hora foi essa
que saltou do ventre
dos relógios
como um garrote
de cinzas?

devo ainda
esperar por mim,
enlouquecer no regaço
das catedrais como
pingo de sol num
peito de viúva?

eu quero dançar
sobre as lâminas rombas
deste tempo
quero cortar-me até ao osso
porque só a dor
é capaz de nos revelar
a grande mentira
que há por detrás
de todas as coisas

tranquilo, assim sereno
de saber que nunca
a posterioridade se
interessará por mim


gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014





11 janeiro 2015

ser ou não ser charlie



Caro Gil,

depois dos acontecimentos de Paris destes dias passados, te escrevo aqui publicamente (vais tu escolher se publicamente ou nao) porque não queria ficar calado, mas lì muitas coisas que vieram só “da barriga”, e muito pouco “da cabeça” das pessoas. Eu não sou Charlie, no sentido que nunca gostei das vinhetas do jornal que são, para mim, parte de uma ideia do mundo (muito pouco)anarco-libertaria que, enfim, acabarà sempre na defesa da propria tradição contra a verdadeira aceitação das diferenças. E ao mesmo tempo eu sou Charlie, porque o horror do homicidio politico e terrorista é sempre uma coisa intoleravel, e a liberdade de expressão deve sempre ser garantida. Mas achei ao mesmo tempo muito triste ver uma grande parte do mundo arabo que, de qualquer forma, està a “pedir desculpa” por aquelo que aconteceu. O mundo arabo não tem culpa nenhuma, e para mim este é o sinal que ainda a Europa (e o mundo inteiro) é muito euro-centrista e pensa de ter uma autoridade moral que, para mim, não tem, ou tem somente na medida em que consegue aceitar as diferenças mais que outros lugares no mundo. Mas, eu penso, ainda estamos bem longe deste resultado.

Não quero escrever demasiado; na verdade, a minha intenção é de mandar-te esta poesia do Louis Brauquier, poeta de um outro grande porto desta velha Europa, Marselha. Ele canta duma cidade de emigrantes, de pobres e trabalhadores, de italianos, espanhois, portugueses e muitos arabes que chegaram ali e que construiram a alma da cidade: uma cidade que é o coração mediterraneo da França. Nas palavras dele vive um povo multicultural e de necessidade antiracista que é, enfim, a unica Europa que amo. Espero que vais gostar.

Contra as armas, as poesias! 

Grande abraço.


Toutes les puissances du globe


Toutes les puissances du globe
Sont là, dans la ville maritime
Où débarquent, brulent et passent
Les races multipliée.
Dans la cohue des idioms,
Au hazard des chants et des rixes,
Et surgissant des faits divers,
J'exalte toutes les puissances.
Puissance du bar où s'accoudent
Les rancoeurs et les desires,
Prés des scintillants alcools,
Versés dans le verre opaque!
Bar que je sais, au mole B
Où boivent les dockers et les maitres d'équipage.
Puissance de la rue trouble au crepuscule,
Quand les lumierès des magasins
Assourdissants
Affolent
Le navigateur débarqué!
Puissance des filles prospères,
Qui appellant sur le trottoir nocturne.,
Quand les sirens des Ports
Ont fait descendre le soleil!
Oh! Dans le soir, aux yeux pervers,
Où les lampes à pétrole s'allument
Aux bouges de chair des vieux quartiers,
La morsure aux entrailles que laisse
Cet appel!
Puissance de l'alcool, de la rue et des bouges
Puissance de carte et de l'argent!
Le coup de revolver qui claque
Aur le Port,
Dans le silente
Des étoiles
Et se prolonge
Par le ruelles
Dans un bruit de fuit éperdue,
Poursuivi par l'aboiement rauque
De side-cars de la police
Et puissance enfin sur mon ame,
Des grand mats et de la mer,
Que j'ai tant de fois chantés!


*

Caro Stefano,

A Poesia servirá sempre melhor a Humanidade do que qualquer arma ou religião.

Deixa apenas que te diga que sim, que acho que o Mundo Árabe tem que pedir desculpas, tanto quanto o Ocidente e a própria Europa.

Franceses e Árabes devem-se muitas desculpas mútuas e pelas mesmas razões: racismo e intolerância.

Experimentar os extremos é muitas vezes a única maneira de se chegar ao equilíbrio. Que  os acontecimentos de Paris sirvam ao menos para isso.

Que Paris seja hoje a grande sala do mundo, onde a Humanidade se olhe frente a frente e dê significado ao velho chavão: somos todos diferentes, somos todos iguais.

Um grande abraço