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23 novembro 2023

josé agostinho baptista / regresso

 




 
Há muito que parti.
Abandonei as searas onde nunca vi os
desígnios de deus.
Abandonei a fé.
Caminhei sem destino,
procurei a árvores secreta dos irmãos,
e, com saudade e desvario, abandonei as casas.
 
Escondi-me.
Escondi o último verso numa noite sem fim.
E hoje escrevo para ti que às vezes me escreves,
do outro lado das terras.
Conhecerei um dia as falésias onde o garajau
paira,
quando chegar, pelas madrugada,
às portas do teu sonho?
 
De pé, sobre o promontório,
olhas para longe, para os meus barcos que
naufragaram.
 
 
 
josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006
 


12 dezembro 2021

josé agostinho baptista / eden mar hotel

 
 
Anoitece.
No promontório a oeste,
as aves do mar parecem adormecidas.
Uma única estrela acende a sua luz sobre o
horizonte,
sobre as lanternas brancas e azuis,
sobre a inquietação dos peixes vermelhos.
Mas nada se ouve.
Ninguém bate à porta,
os amigos são apenas uma palavra vazia,
sepultada para sempre.
Silenciosamente,
duas lágrimas descem do meu rosto,
na varanda deste hotel,
entre as árvores do fogo e a noite em ruínas.
Fecho os olhos.
Dói, às vezes docemente, dói a vida.
 
 
 
josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006




 

06 março 2018

josé agostinho baptista / partida





Partirei.
E ao partir, ninguém saberá quem fui,
quantas horas passei, à beira das lápides,
sem pensar em nada.
Cairá o sol sobre o meu peito.
Cairá a escuridão.

Nas planícies do pai,
há um filho que escreve o livro dos órfãos.
O vento move as espigas.
No centeio e no trigo ouve-se um lamento.
Agora sim, direi adeus.


josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006






08 agosto 2017

josé agostinho baptista / distância



A ausência é um arco de gelo suspenso
sobre as espáduas.
Os ossos cedem ao claro domínio dos
glaciares.
Desapareceram todos os perfumes,
todas as dálias.
Vivo como vivem os teus peixes cegos:
frio e nu ao fundo da noite,
caminhando  pelas bermas.


josé agostinho baptista
paixão e cinzas
biografia
assírio & alvim
2000






04 outubro 2016

josé agostinho baptista / despertar



Quis ser o teu senhor.
Quis subir as tuas árvores,
recomeçar tudo,
quebrar as cruéis molduras do tempo,
antes das chuvas.
Despenhei-me de insondáveis abismos,
ao centro,
onde as aves do meio-dia alisavam as penas.
Ardiam fogueiras distantes, do outro lado da
montanha.
Cinco velas ardiam sobre a mesa,
no salão dos teus passos furtivos.


josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006



07 agosto 2016

josé agostinho baptista / melancolia




Melancolia,
despojos e tendas, sinais,
no desabar das praias.

Havia um cão que caminhava.
Um cão sem nome, às vezes deitado.

Tão meus eram os seus olhos de cão deitado e às vezes
corria.

Há cães como esse,
cães que atravessam a desolação da areia como faro de
desaparecidos deuses, muito antigo.

São lugares para o sono, estes.
Lugares onde se adormece para sempre no rebordo do sol,
na lassidão dos braços.

Silva o ar nos corredores da respiração e não se sabe
o porquê das coisas
o tesouro das marés.

Insurge-se na pele, na exaltação dos poros, o verão de
cada ano,
uma saudade de búzios e barcos esquecidos,
um assombro de náufragos.

Despojos e peles, tardes de iodo e bronze.
Começará o desejo na demora do sol,
no relevo das nádegas?

Há cães que espreitam.
Cães que vagueiam no alarme das dunas, comovidos
homens deitados, com o azul por cima e à volta, de
lado a lado.

Tendas, gritos entrecruzados e a ave imóvel,
tranças desfeitas pela desatenção das ondas, em
desordem,
embatendo.

Caminham os relógios, vorazes ponteiros destruindo
tudo,
e o homem corre, senta-se, enreda a alma nas cordas
do verão,
sinais da paixão, decrépitas gentes, tristes.




josé agostinho baptista
auto-retrato
biografia
assírio & alvim
2000




26 agosto 2015

josé agostinho baptista / o centro do universo



É o fim a teus pés,
as caravanas partem através da bruma,
os filhos partem através de ti.
No interior dos salmos escutas o seu coração.

Assim te busca o tigre com seus dentes de sabre.
Cortante é o fio que te assalta, irrompendo pela carne.
Outro ritmo explicaria as investidas do sangue,
o desejo no florido alpendre dos amores.

Alumia-o se puderes, lua tão branca.

Porque ele não sabe em que reduto se oculta a garra
donde o terror emerge.



josé agostinho baptista
biografia
o centro do universo
assírio & alvim
2000



08 janeiro 2014

josé agostinho baptista / espelho demente


Antes que chegue ao fim diga-se por que param os olhos 
diante da luz.
Excessivo fulgor, um espelho demente? 
Ouve-se um grito no interior dos céus quando a amendoeira 
despenha as suas pérolas.


josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000



16 setembro 2013

josé agostinho baptista / faz-se tarde



faz-se tarde
e eu deixei de esperar-te.

todos os portos se fecham sobre mim
e a floresta adensa-se.

nenhuma clareira se abre à passagem dos
animais e do homem antigo.

são 4 horas na manhã de todos os relógios.



josé agostinho baptista
deste lado onde
assírio & alvim
1976



04 agosto 2013

josé agostinho baptista / conheci-te



conheci-te
quando eras apenas o viajante sem nome
a rapariga admirável de veracruz.

devagar
toquei a tua fronte escura — t e acuerdas?
o rosto,            a nuca húmida,            os ombros,

descendo
descendo sempre
até ao cálido refúgio,       ao centro
onde me perdi.

revejo-te na solidão de uma pátria febril,
nestas mãos de peregrino da meia idade,
no furor do meu sangue estrangeiro,
na inteligível voz de uma alma devastada.

amei-te quanto pude
sobre a terra dos antepassados,
sob o olhar ferido da águia azteca,
sobrevoando
o tempo alto e azul,
atenta sobretudo à loucura de jeremias,
o homem que sou.

tudo aconteceu assim,
invariavelmente na planície sufocante e na pura
neve dos sonhos,
na penumbra das tardes do Pacífico e no Golfo
onde renunciámos à paixão e à vida.

conheci-te
quando eras apenas o viajante sem nome
a rapariga admirável de veracruz.



josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000



04 agosto 2012

josé agostinho baptista / o destino dos amantes





Dissipa-se, no longo nevoeiro, a cintilação de um
archote,
um rasto de imponderáveis amantes.
Quem por eles clama, clama em vão.
Já os pulsos se abriram para a desolação da terra.
Estes rios não são os seus rios.
E esta água mutilada,
esta luz que fere o amplo pátio dos invernos é a sua
água, a sua luz.
Onde o raio despedaça os ténues fios do amor uma
inesperada palavra assume o desastre.
Amaram-se e perderam-se.
De pé, sobre o convés, contemplando o fim dos
navios.
O albatroz descreve os vultos imensos da saudade.
Há, sobre o olhar dos condenados,
uma aflição de sombras,
quando o sol se afasta para os eus domínios.
A sedução dos frutos é a sedução da morte e,
seduzidos, eles demandaram o grande vale.
Um arco de som vibra eternamente no centro da
tempestade.
Eles voltam-se para fora,
para a unânime certeza da escuridão do mundo.
A alma parte.




josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000



09 setembro 2010

josé agostinho baptista / o tempo e o mar








Era um homem, a sombra de um homem e
caminhava para o mar.
Estas pegadas
são o obscuro rumor do tempo
e o tempo é uma vara oblíqua nas mãos de deus.
Que fará um homem com as dores do mundo,
com a última gota dos cálices ao lado da noite?
Reconstruir o teu rosto da amada
dar vida à sua silenciosa vida?
Matar,
no súbito ardil do Outono, os vestígios de uma
palavra secreta?
Há uma cidade profunda onde em profunda água
ela o esquece.
Quem para o mar caminha
leva consigo a maldição das ilhas com um
lírio quebrado, uma ânfora de pólen,
um adeus.






josé agostinho baptista
paixão e cinzas
biografia

assírio & alvim
2000