Mostrar mensagens com a etiqueta malcolm lowry. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta malcolm lowry. Mostrar todas as mensagens

22 abril 2016

malcolm lowry / para debaixo do vulcão



Um limão seco como uma anciã de cócoras com o seu capuz debai-
xo do frio.
Uma pirâmide branca de sal e as moscas
revolteando sobre a mesa laranja, e chove, chove, um peão que
                arranha
e um aparo que arranha, escrevendo oblíquas palavras.
Guerra. E os eléctricos de pescoço quebrado lá fora
e o súbito pensamento quebrado do rosto de uma rapariga em
                Hoboken
e uma tartaruga voltada para cima morrendo lentamente
 na varanda da marisqueira, sangue
que rodeia a sua boca e o chão branco –
pronta para amanhã.
Não haverá amanhã, o amanhã acabou.
Trevo e cheiro a abetos e a grandes ervas,
e peru com molho e a Inglaterra de repente,
a recordação da casa, mas então
os mariachis, dissonantes, pois a ave do maguey
levantou voo, e o empregado de mesa leva
um ondulante prato negro de emoção,
e o rosto do peão é uma mancha de corrupção.
Deixamos de lado o horror do clima
nesta terrível terra de homens meio enterrados
onde vivemos com Canuto, com o relógio de sol e o peixe vermelho,
o leproso, a trepadeira, juntos na torre verde,
e ao pôr do sol tocamos, com flauta e guitarra,
a canção, a canção da eterna espera de Canuto,
o equívoco da minha espera, a flauta do meu pranto,
noiva do nauseabundo vácuo e da raiz descarnada
e a chuva sobre o comboio que lá fora se arrasta, se arrasta,
todo esse vazio na minha alma que agora dorme
onde outrora caminharam altivos tigres limonada andrajosos lepro-
                sos verdes
álcoois peras pimentas pobres e Leopardis recheados;
e o ruído do comboio e a chuva no cérebro…
Tão longe do celeiro e do campo e da azinhaga –
esta pira de Bierce, este trampolim de Hart Crane!
 A morte tão longe da minha casa e da minha mulher
A morte que temo. E rezei pela minha vida enferma –

«Um cadáver deve enviar-se por expresso»,
disse o Cônsul misteriosamente, acordando de repente.


malcolm lowry
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé agostinho baptista
assírio & alvim
2001



11 dezembro 2014

malcolm lowry / sê paciente, pois o lobo



Sê paciente, pois o lobo está sempre contigo.
Escuta, imbecil, o som do teu desejo;
Não te deixes iludir, não é o mar,
O lobo é loucura, mas a lua é luz.
Deus virá de uma ignorância como a tua,
Não como um boneco de caixa de surpresas, mas como
Árvore feita pai choroso em delírio,
As dores da noite têm todas o seu trágico lugar,
Meio rosto de Deus procura a outra metade.
E Ele achará o teu génio na escuridão
E to restituirá sem fiador.

Sê paciente, pois o lobo está sempre contigo,
Feio e mau e, contudo, divino.
Esquece o estrépito do mar,
O mar desdenhoso fazendo beiço todo o dia,
Estridente como fábricas de vidro a estilhaçar-se.
Passa ao largo do mar lustroso, invindimável,
Pois quem lhe bebe mais fundo são os afogados.
A neve negra amontoa-se sob o relógio,
Onde o encontro falhado se junta a tempo ao coração magoado.
Este é um mundo de mistérios sem valor.
Sê paciente, pois muita, muita coisa é paciente.

Sê paciente, pois o lobo é paciente,
Aquele cuja sombra curta aqui parou.
Os prados aguardam que os arco-íris digam Deus,
As sombras aguardam que tu digas a palavra,
Duas almofadas confiam no amor para salvar o mundo.
Ao luar o mineiro vacila junto à âncora suja.
O frete aguarda: o navio congela no fiorde.
O anjo aguarda, o coração feito mão dorida
Pronta a levar-te, longe de nós, para o país do entardecer,
Onde ninguém é voraz, mas onde as coisas se fazem,
E onde não há lobo, nem pensar em dilúvio.
Sê paciente, porque o lobo é paciente.
O pisco aguarda das trevas a reparação,
A andorinha anseia pelo Outono para dizer já,
E Eco por Hero, para não responder não.
Só o sino que segue não espera,
Galopando o seu rosto de mãe pelos campos fora,
Para te esfolar até ao osso com a rudeza do repique.
No começo do Inferno, no meio
Da floresta, a imagem oscila entre mãe e mar.
Não dês ouvidos ao sino nem ao mar envelhecido,
Mas ao bom e querido lobo jura fidelidade.

Sê paciente, por causa do lobo, sê paciente:
Todas as dores e guinchos da noite têm o seu lugar,
Acharás a tua toca de sangue quente e enfim repousarás;
As sombras aguardam que digas a palavra.
Escuta agora o teu próprio passo macio e manhoso.
Sê paciente, por causa do lobo, sê paciente -
O passo dele é já o teu, és livre porque despojado.



malcolm lowry
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d´água
1993



.