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03 maio 2021

vicente valero / de um diário de bordo

 
 
Durante muitos anos viajei.
A minha juventude foi o mar, as ilhas
estrangeiras, a noite, os álcoois
amigos na coberta, as lembranças.
Fugia. E encontrava-me no vaivém
cativo dos dias e dos anos.
Conheço o suor frio nas manhãs
nubladas do outono, no naufrágio
perpétuo do desejo e das palavras.
Mas também aquele outro mais frio
na humildade de um porto, ao chegarem
lentamente os barcos e descobrirem,
ao sol, qual uma chaga na memória,
a pátria quebrada, o coração cansado
de povos milenários que não acabam
nunca de derrotar o implacável
monstro da paixão e da pobreza,
senhor das lendas mais antigas.
Depois este mar – ah, quem poderá esgotá-lo –,
lenta herança de sal, de impuros sonhos,
sempre este mar, o mesmo sempre, o único,
abraçando tudo com suas fábulas
belas de facas, fome e deuses.
Fugia. E encontrava-me sempre em cada porto.
Durante muitos anos viajei
e não saí nunca de mim mesmo.
 
 
 
 
vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000

 





03 novembro 2017

vicente valero / voltar




Fui com o outro que eu fui, com o primeiro,
com o que não sabia fazer as pazes
nunca com a sua grande sede de saber mais… Queríamos
ver outra vez o sol que mal se via,
juntos, o sol fora de si, sem medo,
o fumo da tarde mais lenta sobre o mar:
ver outra vez o sol que mal se via.
E éramos dois agora e com sentido,
falando por falar, sozinhos, discorrendo
pelos caminhos brancos do passado,
brancos de luz ausente e doce, já de noite.
Vimos que o tempo é tudo o que vemos,
que tudo o que vemos se parece,
e um bosque junto ao mar não é somente um bosque,
é música também – e casa própria,
e ferida penetrante e muito espessa… Fomos
os dois pelos alcantis vermelhos
e secos do passado, juntos, sem as promessas
de então, lentamente. E lembro-me de que estava
tudo em desordem como no primeiro dia.



vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






28 março 2016

vicente valero / herança




A vida que nos deram nós vivemo-la.
A fundura transparente dos poços,
a sombra irrenunciável dos pinheiros,
o trânsito custoso dos animais,
o mar tão inseguro dos beijos.
A casa que deixarmos nos recorde
só no manancial dos seus costumes,
só como nós próprios recordamos
o peso milenário dos seus muros,
o cansaço do fruto e das raízes,
a lenda que herdámos dos seus símbolos.
Com que insignificância habita o homem
a pátria da cal e da memória,
o jardim calcinado dos sonhos.
A vida que nos deram nós vivemo-la.
A casa que herdamos habitamo-la.
Tal como a encontramos permaneça,
Antes que nos anuncie o mensageiro
 – ofegante e depois de ter cruzado
a névoa por entre as ilhas – a derrota,
como num drama antigo, seu esconjuro.

  

vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




13 outubro 2015

vicente valero / mar sem caminhos


II

Feliz aquele que um dia, depois de ter sulcado
os mares do planeta e de ter conhecido
a terra desolada, a noite dos homens,
cansado se dirige para uma pátria pobre
que é herança e conquista:

uma pátria no seu peito, onde o amor e o ódio
ancoraram com lendas e habitaram o mundo,
e foram para sempre o centro das sãs obras
e dos seus pensamentos: uma pulsação ignorada,
ainda que firme e profunda.

E agora que o sabe, medita e já não sofre.



vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




31 maio 2015

vicente valero / mar sem caminhos


I

Deve ser como um porto o coração do mundo,
o coração do homem. Aí onde repousa
e começa os seus trabalhos o mar das paixões,
em escura justiça, os desejos, as viagens
e a dúvida em silêncio.

Deve ser como um porto. Uma tarde saberemos
se saíram os barcos ou se tão-só o fantasma
do desconhecido nos lançou à aventura
e agora regressamos com os remos ao alto
até nós mesmos.

E nessa tarde outro mar em paz conheceremos.


vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





10 novembro 2009

vicente valero / teoría solar





XXIX




(epitáfio)


Só, mas não morto, quase morto diríamos,
mas ainda ofegante, com as mãos inúteis
e o rosto azul. Vencido, mas ansioso. O mar
pôs palavras velhas nas minhas orações. Onda,
madrepérola, medusa, alcantil… Fui
o afogado mais duro de roer. Debaixo de água,
digno, ia cantando os poemas de Shelley.
E quando as gaivotas queriam devorar-me,
dava-lhes pão limpo de sonhos incompletos.
O mar era um deus lento, não me merecia.







vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000