03 abril 2014

josé de almada negreiros / esperança



Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente.
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.



josé de almada negreiros




02 abril 2014

amalia bautista / a dieta



Deitei-me sem jantar, naquela noite
sonhei que te comia o coração.
Suponho que seria pela fome.
Enquanto devorava aquela fruta
─ era doce e amarga ao mesmo tempo ─
tu beijavas-me com os lábios frios,
mais frios e mais pálidos que nunca.
Suponho que seria pela morte.



amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



01 abril 2014

manuel antónio pina / como desenhar uma casa



Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.



manuel antónio pina
como desenhar uma casa
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



31 março 2014

rené char / a companheira do cesteiro



Amava-te.
Amava o teu rosto de nascente sulcado pela tempestade
e o emblema do teu  domínio cingindo o meu beijo.
Há quem se entregue
a uma imaginação completamente redonda.
A mim basta-me ir.

Do desespero, meu amor,
trouxe o cestinho mais pequeno
que se pôde entrelaçar em vime.



rené char
furor e mistério
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000




30 março 2014

pedro tamen / o sangue



3.
Escrevo estes versos de grãos de terra na mão: eis a prova.
Tenho a certeza dos passos. Todos temos. Só no mais diferimos.
Era uma longa subida. Era a certeza
da nossa própria emigração. A mais bela,
a mais funda companhia. A perfeita igualdade do transporte
foi amassada em três quedas. Um braço, outro braço, um corpo
e a longa subida.



pedro tamen
o sangue, a água e o vinho
1958





29 março 2014

antónio franco alexandre / escrevo do que sei…



2
escrevo do que sei eis o que ignoro
esqueço-me de ti que me não esqueces
existes no futuro como as casas
como os caules do vento permaneces

olho-te agora e já não estremeço
dias vadios de terra desfolhada
não tenho já motivos como dantes
nossas razões são rimas consoantes

deixa que pouse a pedra psicológica
azul por dentro como um vão veneno
bebo na fonte as mãos termino o quadro



antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



28 março 2014

konstandinos kavafis / ao pé da casa



Ontem, divagando por um bairro
mais distante, passei pela casa
onde eu às vezes ia, ao tempo de ser jovem.
De meu corpo o Amor se apoderou ali
com sua força incrível. Ontem,
quando passava pela velha rua,
lojas, calçada, pedras,
paredes e varandas e janelas,
tudo se transformou por magia do amor.
Nada restou que fosse pobre e vil.

E enquanto eu me ficava olhando a porta,
parado, a demorar-me ao pé da casa,
de todo o ser me fluíam, restitutos,
os sensuais prazeres que tinha em mim guardados.

[1918 ]

  

constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003




27 março 2014

federico garcia lorca / é verdade



Ai, quanto trabalho me dá
querer-te como eu quero!
Por teu amor me dói o ar,
o coração
e o chapéu.

Quem compraria de mim
este cinteiro que tenho
e esta tristeza de fio
branco, para fazer lenços?

Ai, quanto trabalho me dá
querer-te como eu quero!



federico garcia lorca



26 março 2014

daniel faria / se te puseres à escuta…



4
Se te puseres à escuta a magnólia pode ser uma árvore de fruto ─
A escuta enche-nos de sumo como um poço no meio dos pátios.
A magnólia enxerta-me nos pensamentos, é um profundo
Rumor na minha carne, a linha que me vai da mão
A outra mão. Ela não tem medo
De aproximar-se quando minha mãe me pega ao colo.
Ela levanta-me da terra
Como os tufões e os bandos dos pássaros.



daniel faria
poesia
do ciclo das intempéries
quasi
2003




25 março 2014

sophia de mello breyner andresen / instante



Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio


sophia de mello breyner andresen





24 março 2014

alberto caeiro / todos os dias



Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei de ser comigo sozinho.
Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de novo.




alberto caeiro



23 março 2014

dinis moura / os naufrágios do amor exigem




Os naufrágios do amor exigem
medidas drásticas e extraordinárias.

Depois de dezenas de requerimentos,
o mesmo número de insistências,
muita perseverança e algumas rezas,
eis que finalmente surgiu uma vaga.
Foi ontem à tarde.
Durante um bom par de horas
estive à conversa com Santo António
– A ver se me arranja uma moçoila,
uma moçoila carinhosa, bonita, fiel.

A agenda a transbordar,
imensos pedidos, permanentes quefazeres.
– Por tais e quejandos motivos, vi-me forçado
a acrescentar mais três dias ao mês de Fevereiro:
até ao dia 31 não terei mãos a medir.
Ainda pensei que esse assunto das redes socais
contribuísse para aliviar-me a carga – mas qual quê?
A faina duplicou, triplicando-me destarte as preocupações.

Depois em gestos medidos,
numa expressividade parenética:
logo que sobeje tempo
prometo tratar disso.
Como estava a dizer-lhe,
há depois aqueles peixes mais ariscos.

Eu bem fui insistindo na rogatória,
falei na cor dos olhos, que os queria
castanhos, como os da minha mãe.
Gostaria dela com cabelo comprido,
pele branca, sorriso de flor de cerejeira,
pernas de Vénus de Botticelli,
mas o canonizado tagarela passou o resto
da tarde a discorrer caudalosamente sobre
peixes, anzóis e canas de pesca
– e eu a ver navios.

  

dinis moura



22 março 2014

diogo henrique cardoso / dedicatória



I

Quem caminha tem o dom de levar o caminho junto, e às
vezes nem percebe.

II

Perceber é colocar as evidências nas algibeiras da alma,
e lembrar-se é continuar nosso caminho, remexendo
nos bolsos as evidências entre os dedos como se fossem
punhados de grãos da realidade.

III

O presente é um livro de leitura diária. O passado é esse
mesmo livro já lido, cujas páginas começam a ficar descoloridas
e comidas pelas traças. Rememorar, neste sentido,
é voltar a uma história já conhecida e tentar relê-la apesar
das desbotadas marcas.

IV

Sonhar é acrescentar, inventar ou refazer páginas no livro
do presente. O sonho é uma mistura aleatória de muitas
páginas do livro da vida numa edição especial.

V

Poesia é, dentre muitas outras coisas, mas neste (con)texto
em particular, uma forma de caminhar, perceber, ser no
presente, lembrar e sonhar dentro do sonho que se quer ter.
Além disso, é uma forma de "abertura", por onde entram e
saem muitas coisas do corpo da gente.

VI

Aquilo a que chamam "matéria poética" são [sic] maneirismos
de perceber o mundo. Alguns colhem os grãos
da realidade como se fossem flores; outros os apanham
como pedregulhos. Há quem os coloque na alma com
calma; e tais que o depositam com desleixo...

VII

Aquilo que entendemos por "matéria DE poesia" é
tudo que encanta ao ponto que se canta.

VIII

Há "matérias DE poesia" que realizam impropriedades
na "matéria poética". Por impropriedades quero chamar
aqueles movimentos bruscos e solavancos que fazem
com que os maneirismos se inventem ou se renovem,
pois o que é novo e acaba de ser inventado tem de passar
por um primeiro momento em que parece impróprio,
até que, depois, pareça bem a propósito.

IX

Tudo o que tem a ver com poesia tem a ver com a vida
e com aquilo que eleva a vida por meio da Beleza, posto
que encanta. E os encantos podem morar nos mais
inóspitos meios. As Flores do Mal, de Baudelaire,
mostram a ambiguidade que reside nas matérias obscuras
da poesia.

X

A poesia é, ela própria, uma manifestação da vida e
é, também por isso, vital. A poesia e a escrita andam
juntas na atividade do poeta. Mas não pode no mundo
viver homem algum que não se encante com algo, isto
é, que não encontre uma "abertura" em si para a beleza.

***

Esses dez pequenos trechos não constituem meus dez
mandamentos, posto que não estipulo condutas por
eles. Ele não são, também, um tratado, posto que não
constituem definições, mas sim indefinições, já que são
só o que eu digo e não sirvam talvez para além disso
que sou eu. Por que os coloco, então, aqui? – Pois queria
falar.



diogo henrique cardoso
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013