16 setembro 2014

andre breton / fata morgana



(…)

Estar vestido de branco deste homem é evidente que nunca voltará a ser
encontrado
Depois o choque duma lança contra um elmo aqui o músico fez maravilhas
É toda a razão que se vai quando podia soar a hora sem que tu estejas
presente

Nas sombras do cenário permite-se ao povo contemplar os grandes festins
Comer em cena é sempre do agrado geral
De dentro da empada rematada a faisões
Anões metade pretos metade arco-íris levantam a tampa
E soltam-se ajaezados de guizos e de risos
Brilho contrastado de vestígios de tiros das côdeas sobrastes
Plano sequência do baile dos Ardentes flash-back desfocado do episódio que
vem logo a seguir ao do cervo

Um homem talvez ágil demais desce do alto das torres de Notre-Dame
A rodopiar numa corda
Seu pêndulo de archotes clarão insólito à luz do dia
A sarça dos cinco selvagens quatro deles cativos um do outro o sol de plumas
O duque d’Orléans segura o facho a mão a mão fatal
Às oito horas da noite tempos depois a mão
Não esquece a brincar com a luva
A mão a luva uma vez duas vezes três vezes
A um canto com o palácio mais branco em fundo as belas feições ambíguas de
Pedro de Luna a cavalo

Personificando o segundo luminar
Acabar sobre o brasão da rainha em lágrimas
A mágoa Nada mais me é nada nada me é mais nada
Sim sem ti
O sol




andre breton
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994



15 setembro 2014

charles baudelaire / a beleza



Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vem buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.

No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
E nunca choro nem jamais sorrio a nada.

Os poetas, diante do meu gesto de eloquência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;

Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade.
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!

  

charles beaudelaire




14 setembro 2014

nizar kabanni / ontem...


2.
Por favor,
respeita o meu silêncio,
o silêncio é a minha melhor arma.
Escutaste as minhas palavras
quando fiquei silencioso?
Sentiste a beleza do que disse
quando não disse nada?

  

nizar kabanni
(síria, 1923-1998)
tradução de jorge sousa braga




13 setembro 2014

yorgos seferis / última estação



Poucas foram as noites de luar de que gostei.
O a-bé-cê dos astros que se soletra
Tal como o traz o penar do dia que se fina.
Dele se tirando novos sentidos e novas esperanças, mais claramente pode ler-se.
Agora que aqui estou desocupado a meditar, poucas luas me ficaram na memória;
As ilhas, a dorida cor da Virgem, o lento declinar
Do luar nas cidades do norte, que por vezes lança
Nas ruas agitadas, nos rios, nos membros dos homens
Um pesado torpor.
Nu entanto, ontem à noite, neste nosso último cais
Onde aguardamos que amanheça a hora do regresso
Como uma antiga dívida, uma moeda que ficasse durante anos
No cofre dum avarento, e por fim
Chegasse o momento de pagar e se ouvissem
Os cobres a tilintar na mesa.
Nesta aldeia tirrena, por detrás do mar de Salerno
Por detrás dos portos do regresso, no fim
Duma borrasca de Outono, a Lua furou as nuvens
E as casas na encosta da outra margem fizeram-se esmalte.
Silêncios que a lua ama.

Também isto é um rosário de pensamentos. Um modo
De começarmos a falar de coisas que se confessam
Dificilmente, quando já não se aguenta mais, a um amigo
Que se escapou às ocultas e traz
Novas das casas e dos companheiros,
E nos apressamos a abrir—lhe o coração,
Não vá o exílio alcançá-Io e mudá-Io.
Viemos das Arábias., do Egipto, da Palestina, da Síria;
O Estado de Comagena, que apagou como uma pequena lanterna
Muitas vezes volta ao nosso espírito,
E grandes cidades que viveram milhares de anos.
Delas só restando pastagens de búfalos,
Campos de cana-de-açúcar e de milho.
Viemos da areia do deserto, do mar de Proteu,
Almas maculadas de públicos pecados
Cada um com seu cargo, como o pássaro na gaiola.
O outono chuvoso nesta fossa
Inflama a ferida de cada um de nós
Ou, por outras palavras talvez, o destino fatal
Ou simplesmente os maus hábitos, a fraude e o embuste,
Ou ainda a cobiça do sangue dos outros.
Facilmente se tritura o homem na guerra
O homem é frágil, é um molhe de ervas.
Lábios e dedos que desejam branco peito.
Olhos semi-cerrados no esplendor do dia
E pernas que correriam, mesmos tão cansadas,
Ao mais pequeno assobio do lucro.

O homem é frágil e sedento como a erva,
Insaciável como a erva, e seus nervos são raízes que alastram,
Quando é tempo de colheita,
Prefere que as foices silvem em seara alheia,
Quando é tempo de colheita
Uns gritam para esconjurar o demónio,
Outros perdem-se nas riquezas, outros peroram;
Mas, esconjuros, riquezas e retórica,
Quando os vivos estão longe, de que servem?
Talvez o homem seja outra coisa?
Talvez não seja isto que transmite a vida?
Há um tampo para semear, há um tempo para colher.

De novo e sempre o mesmo, dir-me-ás, amigo.
Contudo, o pensamento do exilado, o pensamento do prisioneiro, o pensamento
Do homem que também se viu reduzido a mercadoria
Tenta mudar-lho, que não consegues.
Queria, se calhar, ser rei dos antropófagos
Desbaratar forças que ninguém procura
E passear por campos de agapantos
E ouvir os batuques debaixo dos bambus
Enquanto os cortesãos dançam com máscaras grotescas.
Mas a terra que massacram e queimam como um pinheiro e que vês,
Ou no vagão escuro, sem água, partidas as vidraças durante noites e noites,
Ou no barco incendiado que há-de naufragar como ensinam as estatísticas,
Tudo isso criou raízes na espírito e não muda,
Tudo isso floriu imagens parecidas às árvores
Que lançam na floresta virgem seus ramos
Que voltam a cravar-se na terra e a florir
E lançam ramos e voltam a florir e galgam léguas e léguas.
Uma floresta virgem de folhas mortas é o nosso espírito.

E se te falo por fábulas e parábolas
E porque assim são mais doces ao teu ouvido e porque do terror
Não se fala, que é coisa viva,
Que é coisa muda e avança sem parar,
Goteja todo o dia, goteja durante a noite
A dor das recordações.

Falemos de heróis, falemos de heróis: o Michális
Que fugiu com feridas abertas do hospital
Talvez estivesse a falar de heróis, na noite
Em que, arrastando os pés pela cidade velada,
Gritava e tocava a nossa dor: “Pela escuridão
É que vamos, pela escuridão avançamos…”
Os heróis avançam na escuridão.

Poucas são as noites de luar de que gosto.



yorgos seferis
tradução de manuel resende




12 setembro 2014

arnaldo saraiva / singela balada da procura da amada




Estive em berlim nasci
quando perto andava a morte
fui à coreia corri
a china de sul a norte
perdi-me na ínvia pista
que da índia ia à hungria
percorri falso turista
cuba congo angola argélia
indonésia vietnam
s. domingos ─ tudo em vão

falei a stáline a Churchill
avisti-me com de gaule
krutschev nasser e Johnson
telegrafei a fidel
e ao bom papa João
entrevistei Bertrand russel
pús anúncios nos jornais
mobilizei a interpol
observatórios centrais
ficaram sob meu controle
com james bond e outros mais
atravessei pólo a pólo
cavei o solo o subsolo
espreitei venus e o sol
mas nem sombras nem sinais
de helicóptero de jacto
de foguetão de lunik
de escafandro de trenó
gastei todos os projectos
esgotei todos os truques
vejo agora estou mais só

vejo agora que a ciência
mau grado a sua importância
só prolongou o silêncio
só alargou a distância
que isola a nossa existência

nesta altura da viagem
onde a virtude: esperar
onde esperar: a coragem

mas se viva ainda estás
que por mim jamais te vi
só te imagino a imagem
manda notícias por mar
terra ou ar que tanto faz
ou mesmo por telstar
decerto que em cabo kennedy
ou qualquer outro lugar
captarão tua mensagem
breve: telestou aqui

se não basta um balão sonda
um simples tele-sinal
uma micro micro-onda
do neutro silêncio astral
que a tua voz me responda
mesmo que da lua ou marte
mesmo que sem dizer donde
que diga NÃO HÁ MORTE

ainda que a morte ronde



arnaldo saraiva
1967





11 setembro 2014

alexandre o'neill / lego



1979

Está tudo conformado
ao triste proprietário.
Mecânicas ovelhas,
na erva de plástico,
têm pastor de pilhas
e cão pré-fabricado.
Flores marginam esse
às peças-soltas prado.

Eléctricas abelhas,
obreiras sem contrato,
daquele herbário extraem
um mel supermercado.
A malhada, no estábulo,
quase manga de alpaca
(é A VACA, sabias?),
dá leite engarrafado.

No céu (para colorir)
a nuvem, pontual,
aguarda a vez de ser
chovida no nabal,
enquanto o Sol dardeja
na eira proverbial.

Já tudo afeiçoado
ao bom do proprietário
(ervas, bichos, moral),
ele conta com os seus
e espera sempre em Deus.

("- Deste corda ao pardal?"").



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986



10 setembro 2014

antónio ramos rosa / e certas palavras




E certas palavras prazer
mágoa água plenitude
a cor navegando alta
a casa com flores e chamas

este jardim da verdade
duro pão água da vida
calado o tempo vencido
amor desta mão clara


 antónio ramos rosa



09 setembro 2014

miguel torga / noite




Encontraram-no caído
Ao fundo daquela rua;
Chamaram-no pelo nome, era eu!
- O poeta andava à lua
E adormeceu...

Foi o que disse e jurou
Pela sua salvação
A perdida
Que viu tudo da janela...

E o guarda soube por Ela,
Pelo pranto que chorava,
Quem era na minha vida
O guarda que me guardava...

- Andar à lua é proibido...
Mas Ela pagou a lei
Por um beijo que lhe dei
Antes ou depois de ter caído,
Nem eu sei...


miguel torga
o outro livro de job
1936



08 setembro 2014

antónio pedro / nem sempre ao poeta apetecem as estrelas




Apetece-me não sei porquê uma história de formigas
De formigas assexuadas negras nítidas e rápidas
Com olhos fantásticos colhendo miríades de imagens
E inúteis os olhos das formigas
Desenhadas como um oito ou como um sinal de infinito
Muitas corteses atarefadas prejudiciais
Clericais sociais subtilíssimas pequenas
Formigando no chão
No chão onde florescem os cardos e as cores
No chão onde assenta a carne ansiosa das mulheres
E os joelhos dos homens
No chão onde ecoa a voz repugnante dos pregadores
E a voz das juras e dos negócios
No chão onde cai o suor dos aflitos
E o suor dos amorosos
E o suor dos operários
E o suor dos gordos
No chão onde andam os pés e estalam os escarros
No chão das guerras e das famílias correctas
E dos vazadouros e dos jardins
E do pus verde dos mendigos
E das chagas rendosas e das rendas custosas
E das doidas furiosas
E das rosas
E das airosas e das feias e dos bispos e dos triunfadores
E dos cretinos e das viagens
E dos remédios e dos males
E das vertigens e dos abismos
E das cismas
E dos sismos
E dos vermes do ventre e das sonecas
E dos ludíbrios e dos hábeis
E da força dos garantidos
E das sementes

Apetece-me não sei porquê uma história de formigas
A grande invasão das formigas multiplicando-se
Cobrindo a face da terra e a dos homens e a das mulheres
Entrando-lhes pelos narizes para roerem os olhos por dentro
 E fazendo bulir as coisas mortas e as vivas
Com o espantoso treme-luz irisado e magnífico
Dos seus reflexos negros a substituírem todas as cores

Na grande montanha uma mulher enorme
Nua e infame
Tem as pernas escachadas sob as pregas do ventre
E sob as pregas do ventre seu sexo negro
É o grande formigueiro do mundo


Vive?


As formigas esvaziaram-se da enxúndia e substituíram-na
Só lhe deixaram a pele por fora para ainda haver branco visível
E com pêlos ampliados excitados e crescentes
Cobriram e desceram o vale
Enroscaram-se nas árvores
Desinquietaram a placidez das pedras
Forraram as aldeias e as cidades
Os animais e os homens

Que é dos ciúmes e das angústias?
Que é do amor e das palavras?
Que é das carícias e dos dentes?
Que é das renúncias e dos crimes?
Que é das tentações
Das promessas
Dos desejos
Dos apetites
Das fúrias?
Que é de todas as músicas?
O sol inútil cobre um mar negrejante onde reflexos são como os
          olhos das
moscas
E um silêncio tremendo finge de paz no mundo
Uma paz de silêncio com formigas


Formigas
Formigas
Formigas
Formigas




antónio pedro
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





07 setembro 2014

antónio josé forte / o nome



Veio do outro lado do mar
pronunciado pelo fogo
e jaz nos jardins suspensos sobre a morte
como um vómito do coração
o nome podre de ninguém



antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987




06 setembro 2014

antónio maria lisboa / o amor de arthur rimbaud o mestre do silêncio




Na montanha onde moram as estrelas
bosques que existem há mil anos
de cabelos negros como o luar e a brisa da tarde
quando entra branda entre as pétalas das flores
que se inclinam sobre o morto que dorme
e misteriosamente repete:

"Sur l'onde calme et noire où dorme les étoiles
Un chant mystérieux tombe des astres d'or"
semi-saído da terra com um olho infinito aberto
morto há um ano ao nascer da lua
morto há um dia ao nascer da rosa
morto há um sonho, morto há um gesto
frente ao sopro das árvores da noite
tocou o seio infante numa primavera
e misteriosamente repete:

"O pâle Ophélia! belle comme la neige!
Ciel! Amour! Liberté! Quel rêve, ô pauvre Folle!"
transparente sobre a terra mole de lava de estrela
sobre cabelos idênticos aos dos mortos desolados
morto há mil anos repete:

"La blanche Ophélia flotte comme un grand lys"

o morto misteriosamente diz:

"Il y a une horloge qui ne sonne pas"



antónio maria lisboa
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




05 setembro 2014

josé régio / sucata




I

Fecha esses olhos, fecha-os,
Que a sua luz ofende.
Mas não! arranca-os, deixa-os
Na praça em que se vende
Toda a sucata inútil.
Quiçá os compre um velho poeta fútil.

II

A sua luza ofende, humilha.
Não compartilha
Das pequeninas luzes
Que alumiam os vários alcatruzes
De cada nova nora.
Fecha esses olhos, fecha-os, ou arranca-os, deita-os fora!
Não vês que vão perdendo todo o emprego?
Desfaz-te de eles, ─ fica cego.

III

Na praça em que se vende
Toda a sucata inútil,
Quiçá os compre um velho poeta fútil.
Já nada, a este, ofende.
Servir-lhe-ão
Talvez de claridade,
Talvez de companhia ou diversão.
Coitado! Vive ao pé da Eternidade.




josé régio
cântico suspenso
portugália editora
1968



04 setembro 2014

john ashbery / mas afinal foi a nossa escolha…



4.

Mas afinal foi a nossa escolha que nos incitou aos efeitos da imaginação.
Agora, silenciosamente como quem sobe uma escada, emergimos para a luz
e, ao fazê-lo, privamos o tempo de mais reféns,
Para acabar com a hostilidade que a história há muito tempo iniciou.

Agora, silenciosamente, como quem sobe uma escada, emergimos para a luz,
Mas ela está amortalhada, velada: devemos ter cometido um erro pavoroso.
Para acabar com a hostilidade que a história há muito tempo iniciou
teremos que confiar eternamente, até à perversidade?

Mas ela está amortalhada, velada: devemos ter cometido um erro pavoroso.
Esfregas a testa com uma rosa, recomendando os seus espinhos.
Teremos que confiar eternamente, até à perversidade?
Ao certo, só a noite o sabe; com ela, o segredo está seguro.

Esfregas a testa com uma rosa, recomendando os seus espinhos.
A investigação mostra que as baladas eram produzidas por toda uma sociedade;
ao certo, só a noite o sabe. Com ela, o segredo está seguro:
As pessoas então sabiam o que queriam e como o obter.



john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992