17 maio 2016

yannis ritsos / explicação necessária



Há certos versos - às vezes poemas inteiros -
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.
Já te disse que não sei.
                                         Duas luzes paralelas
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que cai, no inverno, da goteira a transbordar
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco,
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas,
sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera, completava
este inexplicável, que eu procurei,
em vão ainda, explicar-te.


yannis ritsos
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
trad. eugénio de andrade
assírio & alvim
2001




16 maio 2016

antónio quadros ferro / ou a empatia






Eu morri, provavelmente, dentro da escola quando em adulto
percebi que nenhum dos meus professores lia poesia.
Exagero?


antónio quadros ferro
ou a empatia
artes e letras atelier
2015





15 maio 2016

cesário verde / lúbrica



Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançastes, no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!


cesário verde
o livro de cesário verde
1901



14 maio 2016

joão zorro / cantiga de amigo



Pela margem do rio tranquilo,
brinquei, oh mãe, com o meu amigo.
Amores eu tenho, antes não tivesse,
o que fiz por ele, antes não fizesse!

Pela margem do rio ondulante,
brinquei, oh mãe, com o meu amante.
Amores eu tenho, antes não tivesse,
o que fiz por ele, antes não fizesse!



joão zorro
antologia de poesia portuguesa
erótica e satírica
selecção de natália correia
antígona / frenesi
2000



13 maio 2016

mariano peyrou / sesta estival




Há três possibilidades: alcançar-se
enquanto dura, logo a seguir, exactamente
antes. O desejo, uma flecha
que voa em direcção ao que não há,
entra em casa pelas gretas
das portadas, como o sol
da rua e do céu e de
antes. Sempre
foi assim: o sol entra despedaçado
e eu observo as modificações
que produz na pele, como
flutuam as partículas através dos
seus raios, visíveis por um instante
através da tarde. Sempre,
até mesmo quando eu sabia dormir.

A contemplação deste género
de espectáculos, que ocorre na fronteira
entre o interior e o exterior,
que traça essa fronteira através
do meu corpo, não me impede
de respirar nem de fingir,
de imaginar um diálogo,
de acompanhar os meus frequentes convidados;
três ou mais actos podem acontecer ao mesmo tempo.
Ao mesmo tempo? A carícia e a imagem
da rua e o sol de há alguns
anos são simultâneas ma são
também causa uma da outra,
o sol e a greta
(a percepção do sol e a greta);
O que se toca neste
instante recebe os golpes de flecha anteriores,
desferidos numa única decepção.

O que se entrelaça é o que
perturba, os acontecimentos cujo laço
era e continua a ser imprevisível,
cujo laço fica fora do campo
da inteligência e da memória;
a insistência solar neste espaço
meu, desconhecido no
momento em que algo dura e somos
o de antes e depois.

Através das fronteiras reúnem-se,
e movem as fronteiras e mudam as distância
até que a penumbra nos abra
ou nos feche os olhos
e tenhamos de retomar o caminho.

Dias futuros, marcas
dos outros, consequências de projectos
inconcluídos; sou isso
e pouco mais, aí vivemos,
onde ninguém pode chegar sozinho.

Esta tarde está distante. O contacto,
o que está depois, ou antes, são três formas
de se alcançar esta tarde,
de voltar a ser eu, com o que
há e não há, olho e não vejo.
Outros instantes, mais próximos quanto mais
irrepetíveis, flutuam entre o meu corpo
e a minha janela.

Deito-me, tento
ocupar a maior superfície possível
da cama, com todo o corpo
estendido e cravado contra o
céu. Não se pode saber
se estou sozinho ou com alguém.
Cada corpo pesa sobre outro
corpo, cada imagem
gasta e renovada do sol
e da rua desdobra sobre o meu
corpo o seu valor e a sua angústia.
Torna-se inevitável apostar no
Vínculo, reconhecê-lo aqui, em qualquer
gesto, investigá-lo como se se pudesse
concretizar. Valor e angústia
e vínculo: verdades fugitivas,
tardes que se somam e multiplicam
a incerteza, único modo
de calcular o peso dos seus
sóis, da luz indirecta em que
flutuamos através das memórias
parcialmente inventadas, das
palavras e dos corpos que existiram
e existem, múltiplas sensações
que confluem agora num contexto
que é, também, parcialmente inventado.

Acariciando o mundo com os seus
vestígios, alguém se deita ao meu lado
e desafia um costume ou uma forma de pensar.
É a soma, a
multiplicação do passado e da
ânsia, do vazio que o prazer
abre mais à frente. Umas plantas, trazidas
de outra vida, respiram na mesma casa.

Uma criança corre pela rua.
É o prolongamento de um sonho.
Essa gota de saliva é o
Prolongamento de uma curiosidade, de um
impulso em direcção ao vínculo e à névoa.
E tudo isso desemboca no sonho,
no momento de cair e de ascender
pelas paredes uterinas do sonho,
vigiando tudo e sobretudo
as fronteiras e as suas portas ilusórias.
Será triste e redondo como o sol,
como o fogo.

Quase se poderiam incendiar
as portadas, mas agora estão
distantes e obscuras e são já uma memória
embora continuem a filtrar a luz;
incendiarem-se, mas agora a partir do
interior (se é que há exterior),
a partir de onde nascem a saliva e o medo,
a esperança e a tentação de abandonar.

Memória das sestas que
virão, o Verão estende e crava
a ansiedade do calor e o seu impulso
em direcção ao Inverno. Soam os seus passos
pela rua e acordam-me em
todas as outras tardes, a criança
corre como se soubesse quem
é, o que é não correr,
em que se diferencia de mim,
de que fronteira vem a sua vontade
de alcançar e resumir o mundo,
descrevê-lo, tocá-lo.



mariano peyrou
telhados de vidro nº. 19
maio de 2014
tradução de manuel de freitas
averno
2014



12 maio 2016

jeannette lozano / depois de um sonho com gesualdo



Brilhava o fundo da noite,
o horizonte inicial
numa tentativa de espalhar os cantos.

Eu procurava a colina,
a casa, os vestígios da névoa
nas folhas cortantes do cipreste.

Vi uma ponte afundar-se, a espuma,
a voz
da árvore escutei.



jeannette lozano
telhados de vidro nº. 19
maio de 2014
tradução de inês dias
averno
2014



11 maio 2016

rui diniz / argumento




Escrevi um longo conhecimento do desespero.
Um dia abri na noite as razões silenciosas.
Senti o cérebro torcer-se lentamente e depois
parar, toldado pelo esquecimento. E na amnésia,
entre alguns rios lisos de cores escuras, dias
e noites permaneci. Ao fim de alguns meses
recordei uma cidade, que um rio atravessava,
onde eu conhecera outrora todas as pessoas
destruídas pela sua própria vida e onde só
pessoas assim eu conhecera. Lembrei-me da
maneira estranha como tantas delas tinham
morrido. O alcoolismo era então uma enorme
razão. Alguns dos amigos fumavam marijuana.
O seu riso rachava o muro da noite e descobria,
para trás, lentos cemitérios onde o luar
tingia. Os livros consumiam-me os olhos e
a cabeça doía-me. Pude assim lembrar-me
de ter escrito poemas sobre a doença de
imensa gente, uma espécie de febre, ou uma
coragem constantemente estrangulada, um
último oferecimento do seu desejo à vertigem
e depois, uma manhã em que se sabia dos
suicídios.
Mortos, os seus dedos floresciam a penumbra
dos quartos, os seus lábios apodreciam já
sob poeira azulada, as praças inclinavam-se
uma vez mais como sítios de uma única
ternura. Os seus quartos estavam sempre cheios
de lixo quando os encontravam, e alguns
ainda sorriam daquilo que os tinha feito
dizer: amo-te e podemos tentar ser muito
felizes e depois, quando o desespero os elucidava:
amávamo-nos, poderíamos ter sido felizes.
Escrevi este longo conhecimento dos amigos
mortos e eu próprio escapei a uma noite
qualquer. Mas nesta amnésia de só algumas coisas
ainda mais permaneci.

Essa cidade e esses nomes dissolveu-os o
que pude lembrar: poentes nas esplanadas,
tomando aperitivos e rindo e vendo
a multidão descendo os espessos lugares.
Noites nos dancings ou nos quartos, fumando
a desolação, escrevendo poemas sobre ruínas
e vidas que se consumiam em abandonos
e viagens.
Tudo era estéril como a doença que nos
movia, de lugar para lugar, uma fome pura
e quase construída, uma indiferença que
compreendia tudo e os anos através das
caras e dos corpos e mais tarde o desalento
e estarmos vivos.

Escrevi sobre as tardes e a sua lenta solidão
e depois as vozes vindas através dos sítios
essa cidade em que esqueci o que poderia
escrever ainda, a minha recordação talvez
dos anos, nas bocas azuladas, no repouso
com sangue, com lentos sonhos dentro
dos olhos lívidos, com o último olhar de
esquecimento, o mais árido lugar,
a insuportável solidão.

E repeti dias e dias o desassossego. Os nomes
que poderia lembrar. A cidade com os seus
lugares de desespero o que me foi sendo
possível recordar. E neste desolado hospício,
hoje, vi todo o meu enlouquecimento – um
propósito de me lembrar de todas essas coisas
e o seu lento e doloroso sabor. Um
obsessivo crescer do sofrimento – maior amor.



rui diniz
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987




10 maio 2016

marguerite yourcenar / os trinta e três nomes de deus


Tentativa de um diário sem datas e pronomes pessoais



1
Mar pela manhã 

2
Murmúrio da
nascente nas
rochas
sobre os muros de pedra 

3
Vento de mar
a noite,
sobre uma ilha 

4
Abelha 

5
Voo triangular
dos cisnes 

6
Cordeiro recém-nascido
formoso ariete
ovelha 

7
O terno focinho
da vaca
o focinho selvagem
do touro 

8
O focinho
paciente do
boi

9
O rubro fogo
na lareira 

10
O camelo
coxo
que atravessa a
grande cidade atravancada
a caminho da morte 

11
A erva
O odor da erva 

12
‘ ‘’’’’’

13
A boa terra
A areia
e a cinza 

14
A garça real que
esperou toda a
noite, quase gelada,
e pela aurora encontra
com que aplacar sua
fome 

15
O pequeno peixe
que agoniza
nas goelas da
garça real 

16
A mão,
que entra em
contacto
com as coisas 

17
A pele —
toda a superfície
do corpo 

18
O olhar
e o que ele vê 

19
As nove portas
da
percepção 

20
O torso
humano 

21
O som de uma
viola ou de uma
flauta indígena 

22
Um trago
de bebida
fresca ou
cálida 

23
O pão

24
As flores
que despontam
da terra
na primavera 

25
Sono
em um leito 

26
Um cego
que canta
e uma criança
enferma 

27
Cavalo que
corre
em liberdade 

28
A mulher —
os — cães 

29
Os camelos
que se banham
com seus filhotes
no difícil oued 

30
Sol nascente
sobre um lago
ainda meio
gelado

31
O relâmpago
silencioso
O trovão
fragoso 

32
O silêncio
entre dois amigos

33
A voz que vem
de levante,
entra pelo ouvido
direito
e ensina um canto 

  
22 de março 1982



marguerite yourcenar
os trinta e três nomes de deus
tradução de mário rui de oliveira



09 maio 2016

hans-ulrich treichel / recordação do pai



Batia com a esquerda,
por vezes cego de raiva.
A direita estilhaçada até ao ombro
num campo de batalha russo.

Quando chovia
a luva preta cheirava a cabedal
e doía-lhe o braço perdido.

Se estava de feição dava-nos dinheiro
e deixava-nos enfiar-lhe o elástico branco
pela manga da camisa.

Mais ainda que a força da sua esquerda
e os rompantes da sua ira
temíamos
a sua ternura sem jeito.

Talvez até o amássemos,
sentindo-lhe escondido o medo da solidão.
Mas acabávamos sempre a fugir-lhe.

Melhor me lembro
desse braço postiço
com a mão de couro preto
do que lembro o seu rosto.

Ainda estou a vê-la
imóvel na toalha branca,
ao lado do prato,
com a carne já cortada:

Incapaz de violência,
e de uma dependência inexprimível.




hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




08 maio 2016

nikolaï kantchev / ditadura



Tu, árvore de um só fruto, de um grão a semear,
dizias duas três vezes mas quem poderia ouvir:
o ribeiro não é nenhum trapaceiro
se for bem ouvido, sem o colocar sob escuta.

            A mochila do caçador deve ser
            sempre um ninho para pássaros,
            sempre um ninho para pássaros.
 
O sol viu colheitas mais douradas
e almas menos prateadas que as daqui:
nada de fraterno entre os  irmãos escritores...
Um dia encontrarei o dia que será mais que um dia.
 
            O pássaro que se mete num buraco de rato
            nunca se transformará em morcego,
            nunca se transformará em morcego.



nikolaï kantchev
poemas
tradução de egito gonçalves



07 maio 2016

manuel bandeira / a camões



Quando nalma pesar de tua raça
A névoa da apagada e vil tristeza,
Busque ela sempre a glória que não passa,
Em teu poema de heroísmo e de beleza.

Gênio purificado na desgraça,
Te resumiste em ti toda a grandeza:
Poeta e soldado… Em ti brilhou sem jaça
O amor da grande pátria portuguesa.

E enquanto o fero canto ecoar na mente
Da estirpe  que em perigos sublimados
Plantou a cruz em cada continente,

Não morrerá, sem poetas nem soldados,
A língua que cantaste rudemente
As armas e os barões assinalados.


manuel bandeira
antologia poética
editora nova fronteira
2001



06 maio 2016

antónio pedro / maresia



Neste mar à minha frente
O sol repousa e os nossos olhos dormem…

– Caem saudades mortas como chuva miúda,
Ou sobem, trémulas, como o vapor das algas,
Ou ficam, extáticas como um bafo de areia,
Calmas, sobre a paisagem,
Como um véu de cambraia deixado…

Não sei se é o calor das algas,
Se é o bafo da areia que baila,
Ou se é a chuva miúda que cai neste dia de sol
Como um véu de cambraia deixado,

Sei que me lembram os signos do zodíaco
Em boa caligrafia,
Uns signos como nem sequer eu tinha imaginado!…

E este calor que dimana da terra e nos confunde com ela,
Nos aquece as pernas de encontro à areia, numa vida exterior
Com mais sangue que a nossa e, sobretudo, cheia
Duma inconsciência que não se parece com nada,
Esta respiração pausada como as ondas, de trás para diante
Fazendo, lentas, e desfazendo
A mesma curva humaníssima e sensível,
Faz-me escrever, devagar, e com letra de menino pequeno
Sobre o chão acamado, esta palavra

AMOR.


antónio pedro
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001