16 agosto 2016

fernando luís / num café de bolonha



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Um momento, deixa-me.
Não és quem quero, ver-te
turva o sentido desta realidade,
da ponte sobre o tejo,
cacilhas, o inverno
de temporais lá para dezembro.

Procuro-te no descampado
irreal das madrugadas, escadinhas
da praia acima, escolas gerais,
costa do castelo numa pequena
melodia sem parecença sem ninguém.

Por isso, esqueçamos
coisas por dizer, hábeis
silêncios, loas,
porque o sentimento em
ti posto se entrelaça em meias-águas.

Uma pausa,
um abanar de cornos
e a paisagem voltará,
estou certo,
com seu insolente ímpeto,
sua altiva harmonia.



fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



15 agosto 2016

jorge de sousa braga / esse verão



Vinha meio nu
Trazia uma cesta de vime cheia de amoras
que colhera nas margens do rio
Passara a tarde toda de silvado em silvado
Na sua mão direita um pequeno arranhão
 – Tão quente tão quente
esse verão

  

jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991




14 agosto 2016

joaquim manuel magalhães / pelos caminhos da manhã


primeiro

A sombra da ave sobre o mar
Cada onda protege o seu percurso.
Partem o sol, o imperfeito rosto
dos deuses de cada instante.
Passa no céu,
uma corda prende-lhes na cinta
a roupa, o fogo, aí repousa
o tempo e o chão liso.

A tua pele parece uma espada,
uma esfera de ouro, um olhar perdido.
As maçãs caem, ficam em flor,
a água dorme, os insectos,
o sal dos juncos, o barro a secar.
A diurna transfiguração do corpo,
do meu, do teu, a música da matéria.

No mesmo abraço adormecidos
inteiros sob o véu dos astros
de novo os guia um triplo silêncio.
Sobre os vidros da erva
cobertos do luar do verão.
Ouvem hinos ocultos, números
a que respondem poderes, ritos, preceitos,
a  ressurreição.
  


joaquim manuel magalhães
consequência do lugar
relógio d´água
2001



13 agosto 2016

fernando alves dos santos / vento



Escuto o vento:
os gestos do palhaço nos olhos dos companheiros,
o cloc, cloc, duma fonte nos lábios,
uma prece do céu perto das pessoas,
o verde silêncio das ervas.



fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005




12 agosto 2016

armando pinheiro / ricochete



Atirei balões à Vida,
Coloridos…
Julguei-os todos perdidos
Na paisagem esquecida…
E eis que a Vida, em seus baldões,
Traz aos meus olhos pasmados,
De novo, alguns dos balões,
Desbotados…




armando pinheiro
espelho
editorial inova
1978



11 agosto 2016

andré breton / os beijos de socorro



Os beijos de socorro: Assimilados como estão aos pombos-correio, mostram, de forma menos figurada, a necessidade que tenho de um gesto que todavia recuso, necessidade essa que não é estranha às etapas do caminho já mencionadas. Nem por isso se encontram esses beijos menos bem situados aqui, no plano das possibilidades, dada a sua posição entre os pombos-correio (ideia de uma pessoa favorável) e os seios, dos quais me vi forçado a dizer, no decorrer da narrativa, que me roubavam toda a coragem de renunciar.


andré breton
o amor louco
tradução de luiza neto jorge
estampa
1971


10 agosto 2016

juan liscano / ressurgimentos



     Na medida do ir morrendo
a cada homem e às coisas
antes de morrer inteiramente,
ressurge uma e outra vez o mundo
com seus oferecimentos e promessas.

     Há instantes de viver
sem ser possuído, sem possuir,
sob a intempérie do ressurgimento;
dia novo
incrivelmente edénico
e recupera-se um alento inesperado
para acreditar na duração.

     A beleza existe, vive, suporta feridas,
expele uma aura de energia subtil,
envolve as formas obscuras do enraizamento,
suscita rajadas de assombro,
esfuma o inexistente, o pesado,
cria distâncias, afasta-se, parece ocultar-se
e mostra-se, livre e sensual,
em cada ressurgimento.


juan liscano
tradução de josé bento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001


09 agosto 2016

fiama hasse pais brandão / canto da sombra



Ao Sol cada tronco cai em sombra
e, no chão, a floresta ou o pomar
mostram o duplo real que nos enfrenta.
Passamos sobre sombras entre as árvores
atentos ao desenho singular,
que não pisamos, dos intervalos da luz.
Passamos entre as sombras e não lançamos
os braços em redor de cada árvore,
ávidos da suave escuridão pisamos
os troncos que tombaram junto à sombra.
Se vou ao pomar das árvores cítricas
escolher o fruto que nos dá o aroma,
aí, ao lado década tronco, eu vejo
a umbela de sombra que nos impele
para o desejo desse fruto duplo.
E a memória retém o objecto e o Outro,
tronco de choupo ou copa de limoeiro;
conhecermo-nos, como diz Sócrates,
é conhecermos no Outro quem nós somos.
A sombra serve ao Canteiro para o traço
da infinita recta, que se torna curva
e lhe dá a forma ideal que reúne
o recto e o curvo, o perto e o além.
No frontão do Pórtico inscreveu
na medida da sombra a esfera do Sol.
Cada dia temos as mínimas sombras
de tudo o que recolhe a mão,
e as nossas casas jazem diante de si mesmas
e vão rodando no seu eixo de sombra.
O cone escuro da nossa própria Terra
escurece a luz do luar branco.
Na geometria dos vultos planetários
por fim ficamos, na escurecida Terra,
predizendo o sentido do futuro.

30/11/93


fiama hasse pais brandão
cantos do canto
relógio d´água
1995



08 agosto 2016

amalia bautista / a tentação



E se naquele momento nos tivesse
surgido de repente uma serpente?
Que terias feito face ao meu medo?
Como é que me terias convencido
para que abrisse os olhos e contemplasse
na boca desse réptil a maçã?



amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013



07 agosto 2016

josé agostinho baptista / melancolia




Melancolia,
despojos e tendas, sinais,
no desabar das praias.

Havia um cão que caminhava.
Um cão sem nome, às vezes deitado.

Tão meus eram os seus olhos de cão deitado e às vezes
corria.

Há cães como esse,
cães que atravessam a desolação da areia como faro de
desaparecidos deuses, muito antigo.

São lugares para o sono, estes.
Lugares onde se adormece para sempre no rebordo do sol,
na lassidão dos braços.

Silva o ar nos corredores da respiração e não se sabe
o porquê das coisas
o tesouro das marés.

Insurge-se na pele, na exaltação dos poros, o verão de
cada ano,
uma saudade de búzios e barcos esquecidos,
um assombro de náufragos.

Despojos e peles, tardes de iodo e bronze.
Começará o desejo na demora do sol,
no relevo das nádegas?

Há cães que espreitam.
Cães que vagueiam no alarme das dunas, comovidos
homens deitados, com o azul por cima e à volta, de
lado a lado.

Tendas, gritos entrecruzados e a ave imóvel,
tranças desfeitas pela desatenção das ondas, em
desordem,
embatendo.

Caminham os relógios, vorazes ponteiros destruindo
tudo,
e o homem corre, senta-se, enreda a alma nas cordas
do verão,
sinais da paixão, decrépitas gentes, tristes.




josé agostinho baptista
auto-retrato
biografia
assírio & alvim
2000




06 agosto 2016

mia couto / o bebedor de sóis



No deserto,
onde o céu é redondo,
de mim mesmo sou miragem.

Na areia
me afundo, defunto,
até não haver sombra
senão sob cansaços de pálpebras.

Quando não há mais
que vento e dunas,
em mim invento o derradeiro oásis.

Uma raiz
então me convoca,
pedindo-me certo e definitivo.

Não nasci, porém,
para junto de fontes morar.

De novo,
vou por onde não há caminhos.

E só no fogo deixo pegada.


mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013



05 agosto 2016

mario luzi / ano



Benéficas agora, ainda tranquilas
As cepas, as uvas
A vinha do enforcado. O Outro
É ainda o desconhecido, o Outro estava, está sempre
Fechado neste céu opaco
Onde a luz avinhada
É cada vez mais frouxa
 – e o grito do tentilhão já é só gelo.

Aqui, nestes trabalhos calmos,
Claros, aqui prossegue arde
O tudo que não tenho
Mas tenho que perder.
Os tempos que se foram,
O tempo que aí vem
Arremetem –
Sem saber como, cheguei aqui,
Espero, ardo, avanço por
Dias e dias inacessíveis
E torno-me sem fim o que já sou,
A repousar nesta luz vazia.


mario luzi
trad. ernesto sampaio
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



04 agosto 2016

marcos tramón / num bar nocturno



Uma, como se fosse toda um nervo,
inquieta. A outra, sóbria, mais serena.
Ambas morenas e provocadoras
(como um convite inalcançável),
Beijam-se sem pudor (já te toparam)
Certas de tentar a quem as olha.
A tua cara uma garrafa, vermelha,
de vinho tinto entre as mãos delas
(bebem como cossacos).
Saberás dissimular tanto descaro,
porque pensas que elas já te entendem,
que te explicas inteiro ao observá-las.

Não é tão fácil, não é baixa excitação
se as contemplas.
É algo muito mais para além disso,
é algo muito mais para alem delas.
E é tão fácil, contudo, é tão fácil
como um desejo. E como poderias
explicar o amor assim de súbito?
E não será o amor qualquer coisa
de essencial natureza
feminina, palpável de verdade
unicamente num corpo de mulher?

A tal ponto que desejarias
ser essa rapariga que desperta nervosa
para o desejo que cumpre entre outras companheiras,
com outras companheiras…
Olha-as, já se vão. De todos esses dias
que são para elas um feliz segredo,
que brilham como vertigem nos seus olhos,
como caídos do céu, nem a um só
estás tu convidado. Melhor assim.
Cúmplices te dedicam um último beijo cúmplice.

Ninguém lhes diga o que é o amor,
elas de boa fé já o sabem.


marcos tramón
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000