17 setembro 2016

rui lage / 31 de janeiro



A rua é comoção antecipada,
Noutro lugar é a mesma ternura:
Imolar o gesto à mulher amada
Ser-se a madeixa dócil e escura.

Quem as navega e acende? Quem as colhe
Já tão frias nas escadas de metal?
Quem dará graças depois ao que nos tolhe
Após as luzes e os enfeites de Natal?

De qualquer fogueira subir em centelhas,
Em qualquer lume que esfria ser acha
E cheirar teu rosto a maçãs vermelhas.

Peneirar do que declinas o não dito
Ou escrevê-lo até (mas num céu nítido
Que nuvens eu não sigo assim aflito)…


rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002






16 setembro 2016

josé manuel teixeira da silva / adeus



5
Entre vagas e vagas alternadas
partimos sempre da nossa vida inteira
como de uma ilha tão pouco visitada
À deriva das horas submersas
a neve sobre a neve, o rosto da amada
vida que corria com o rio
este último canto sobre as águas


josé manuel teixeira da silva
as súbitas permanências
quasi
2001



15 setembro 2016

herberto helder / em quartos abalados…



Em quartos abalados trabalho na massa tremenda
dos poemas.
Que me olham de tão perto que eu ardo.
Um dia hei-de ficar todo límpido,
ou calcinado nervo a nervo. Ou por me ver
Deus
de um canto das palavras, com sixtinos
dedos pintados em torno à voragem
diuturna, tocando na matéria.
Ininterrupto, eléctrico.
Alguém poderia dar um grito.
Quase morro de medo ao sentir o meu nome.
Penso que apenas numa hora o sangue encharcaria
a roupa de alto a baixo, enquanto
brilha o rosto.

Às vezes Deus torna-me rápido.
Às vezes há um candelabro.
Às vezes há os mortos de que se extrai o mármore

*

In stanze squassate lavoro sulla massa tremenda
dei poemi.
Che mi guardano cosi da vicino che ardo.
Un giorno resterò turro límpido,
o calcinato nervo a nervo. O perché mi vedrá
Dio
da un angolo delle parole, com sistine
dita dipinte intorno alla voragine
diuturna, toccando la materia.
Ininterrotto, elettrico.
Qualcuno potrebbe dare un grido.
Quasi muoiodi paura a sentirei l sangue impregerebbe
i vestitti da cima a fondo, mentre
riluce il viso.

A volte Dio mi rende rápido.
A volte c´è un candelabro.
A volte ci sono i morti da cui s´etsrae il marmo.


herberto helder
flash
empira
roma
1987




14 setembro 2016

manuel antónio pina / algumas coisas



Sair é viver
entrar é morrer.

(do Tao Te King)


A morte e a vida morrem
e sob a sua eternidade fica
só a memória do esquecimento de tudo;
também o silêncio daquele que fala se calará.

Quem fala de estas
coisas e de falar de elas
foge para o puro esquecimento
fora da cabeça e de si.

O que existe falta
sob a eternidade;
saber é esquecer, e
esta é a sabedoria e o esquecimento.


manuel antónio pina
o que está atrás de ti
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992



13 setembro 2016

vergílio ferreira / já há oito séculos



Já há oito séculos, meu povo, escreves
A história para os outros.
É tempo agora de escreveres a tua



vergílio ferreira
diário inédito 1944-1949
bertrand editora
2008



12 setembro 2016

paulo da costa domingos / sim



Uns comem, outros
nem por isso, e aqueles
que sim é porque
estava a jeito
e têm estômago
para empurrar tudo
e todos, e todos se se fazem
à oportunidade
pela vida é porque sim


paulo da costa domingos
versos abrasileirados
& etc
2012



11 setembro 2016

vitorino nemésio / o bicho harmonioso



Eu gostava de ter um alto destino de poeta,
Daqueles cuja tristeza agrava os adolescentes
E as raparigas que os lêem quando eles já são tão leves
Que passam a tarde numa estrela,
A força do calor na bica de uma fonte
E a noite no mar ou no risco dos pirilampos.

Assim, gloriosos mas sem porta a que se bata;
Abstractos mas vivos;
Rarefeitos mas com o hálito nebuloso nas narinas dos animais,
Insinuado nos lenços das mulheres belas, cheios de lágrimas,
Misturado às ervas grossas da chuva
E indispensável aos heróis que vão rasgar no céu, enfim, o último sulco!
Ser a vida e não ter já vida ‑ era um destino.

Depois, dar a minha Mãe a glória de me ter tido,
A meu Pai, vendado de terra, um halo da minha luz, e tocar tudo,
Onde eu houvesse estado, de uma sagração natural:
Não digo como as Virgens Aparecidas,
Que tornam imbecis e radiosos os pastorinhos,
Mas como certo orvalho de que me lembro, em pequeno ,
Para lá da janela a luz cortada por chuva,
E uma prima que amei, a rir, molhada, chegando;
Mar ao fundo.

Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino,
E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta,
E preguiça,
Impressão de morrer do primeiro desgosto de amor
E de ir, vogando, num negrume que afinal é toda a luz que nos fica
Desse amor forrado de desgosto,
Como as estrelas encobertas,

Que, depois de girar a nuvem, mostram como estão altas:
Tudo isto seria aquele poeta que não sou,
Feito graça e memória,
Separado de mim e do meu bafo individualmente podre,
Livre das minhas pretensões e desta noite carcomida
Pelo meu ser voraz que se explora e ilumina.

Mas não. Do canto necessário
Para me diluir em som e no ar que o guardasse
(Como o nervo do degolado alonga em tremor seu pasmo)
Não chego a soltar senão uma vaga nota,
E a noite faz muito bem em vergar uma gruta sem ecos
No  meu buraco vil de bicho harmonioso.

Deixarei, estampada pelo silêncio definitivo,
A ramagem fremente dos meus dedos num pouco de terra,
Estranho fóssil!


vitorino nemésio
o bicho harmonioso
antologia poética
asa
2002




10 setembro 2016

carlos de oliveira / desenho infantil


III

É fácil ver ainda nos cadernos escolares, no espólio que as razões de família acautelaram em arcas protectoras, a cólera das cores, a impaciência dos traços que rasgam o papel: imaginava dunas ocres, chuva a desabar num ímpeto castanho, animais de chifres encarnados resistindo à matança, lobisomens com a violência azul dos cavadores a levantar a enxada, sóis estilhaçados, como se a luz batesse nas janelas e a criança as partisse.


carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




09 setembro 2016

armando silva carvalho / poema dos motoristas oficiais



Encontram-se um pouco por todos os lugares.
Ora fumando,
orando pelos filhos junto a um deus
secretariado por magníficos
patrões.
De fato azul e gravata preta,
de anel  cachucho e jornal da bola,
o rabo habituado aos bons cabedais
pousado no capot ultra-reluzente.
Trazem a província em cada bolso do corpo
e estendem olhos julgadores às mulheres solitárias
de cigarro na boca em plena rua.
Às vezes são quatro ou cinco à espera do final
um conselho em pleno parto,
de uma portaria inacabada
ou de uma reunião e economia mística.
Derramam o passeio
o ócio inexplicável  rústicos fiéis
e contam anedotas num bocejo amarelo de melancolia.
Quem lhes dera a reforma, a courela da mãe
ou num sonho longínquo
essa noite sem lua em que engravidaram
a prima por descuido.
Sinto por todos eles um sentimento soturno
e muito gostaria
que Cesário os conhecesse
ao passear sozinho
pelas novas avenidas ao anoitecer.


armando silva carvalho
lisboas roteiro sentimental 2000
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



08 setembro 2016

antónio gancho / de há vinte anos para cá



De há vinte anos para cá
já eu estou transformado noutra coisa.
A loisa de preta para branca
quando o visitante lá descansa a anca
sobre ela
parece que de repente se há uma janela
em frente
tudo se some à janela.
Assim como ela a loisa
nunca poisa
numa mesma posição
assim como já dissemos
ou é preta ou branca não
assim também eu poeta
de há vinte anos para cá a esta parte
não está na mesma arte.
Que há muita coisa a prever
além da loisa
a arte de escrever.



antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995



07 setembro 2016

yvette centeno / morangos silvestres



Cóleos begónias avencas
aprendo o nome das plantas
e de manhã como fruta
(não era o que tu dizias?)
antes de tomar café.

Mas a seguir ao café
sobra-me um dia comprido.
Não sei que fazer sem ti
(não há morangos silvestres)

não sei que fazer comigo.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998



06 setembro 2016

miguel-manso / que dia é hoje



que dia é hoje em redor do tempo

a erva cresce acende o fogo a cada flor
é uma maneira distinta de praticar o inteiro:
antever o desfecho da cordilheira solar

montado ainda na bicicleta da manhã



miguel-manso
persianas
tinta da china
2015



05 setembro 2016

rui diniz / invocação de quem se amava



Bebi a desolação em Baltimore num
café. Sentia-me só. Escrevia cartas aos
exilados e tinha uma terrível dor de cabeça.
Por momentos vira os lugares alagarem-se
nas maldições dos mosteiros. Alguém me
lembrava Mr. Kite pagando as bebidas aos
poetas saídos da prisão, e, depois, a própria
prisão de Mr. Kite e a sua morte dias depois.
Chovia, Kite, nos teus cabelos sem cor. Tinhas
as mãos enfiadas nos bolsos, cheias flores
de obstinação. Eu lia os livros da hora
revoltada, os escuros atentados desses
dias,  inútil harmonia dos poemas. Para
mim, eram essas horas de um intenso
esquecimento e os poemas lidos desapareciam,
desapareciam os escritores da
infelicidade. Eu  procurei os lugares sombrios
e vi que tinham sido extintos, abandonados
na maior precipitação. Aí estive alguns
anos e aí vivi o obscurecido ópio da
minha vida, a decisão brusca dos teus
lábios de morta. Morta – eis como te avizinhavas.
Rindo, rias da minha vida áspera, de
revolucionário, aparecias frequentemente
nos cafés clandestinos da margem sul
e acusavas o que eu escrevia, as cartas
aos exilados.
Até que uma manhã eu próprio me ri
e vi lágrimas de medo transformarem-me
o rosto – era chegada a época da
nossa condenação. Era chegado o outono
com o seu cortejo de corpos amnésicos,
sua orgia desprovida de repouso.

  
rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977