08 outubro 2016

j. h. santos barros / lajes field, ilha terceira, açores



1.
I love to be here. Impossível
escrever português. Ó ky master, Master
of war. A espessura do asfalto, dos vidros.
Café com leite milk no wisky. Good-bye Susan
till after Vietnam. Angola. I love you.
O petróleo.

2.
Ó God, save Lajes Field. Acordei
o ar condicionado arejava-me por dentro.
O brilho das bolas de bilhar, a limpeza
extrema do clube de sargentos. Escrevo
voltado para o norte, onde fica o mar, o limite
da terra. Outrora o trigo. As vacas e as casas baixas,
brancas, além. O novo mundo há-de dar cabo
de tudo isto. Let me see. Folk. Ó subdesenvolvimento,
ó miséria, enjoy, enjoy, yourself.
A relva do campo de golfe relva bem tratada,
relva clara. Iluminada. Como chocolates,
let me try the slot. No. no. machine guns never.
I´ll give you peace and chewing-gum. Believe.
Rebentaram com o bairro da lata? Santa Rita,
serra de Santiago, ó when the saints.

3.
O que me dói nos olhos é a noite passada
em claro. Alguma coisa tentando safar
dos bidões do lixo. Da polícia tentando
também safar-me. Estou atento a Mrs. Glen
espero tudo do seu programa people to people.
Abençoada América que tantos favores nos
fazes. Meu tio Lopes passou 18 meses na prisão
Por ter roubado uma peça de paraquedas
Julgando tratar-se duma gabardina? Importante.
O self-service funciona. Refeições económicas. Coca-e-
– cola. I love to be here. Justice.
In God we trust.
O chão molhado. Cruzam-me a pele e os ossos
Motores potentíssimos. Devagar e a boots
saio da base. Fuck you, Joe!  



j. h. santos barros
os alicates do tempo
afrontamento
1979



07 outubro 2016

mário dionísio / jovem de riso ardente



LXII
Jovem de riso ardente
e voz irreverente
rubra provocação

Jovem-explosão
tratando a Revolução
tu cá-tu lá

daqui a vinte anos que dirás?

Como serás
e que haverá
então?



mário dionísio
poesia completa
terceira idade 1982
imprensa nacional-casa da moeda
2016




06 outubro 2016

arsenii tarkovskii / o espelho


III
Não acredito em pressentimentos
e augúrios.
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia.
Nem do veneno.
Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal.
Não há por que ter medo da morte aos 17
ou mesmo aos 70.
Realidade e luz existem,
mas morte e trevas, não.
Agora estamos todos na praia
e eu sou um dos que içam as redes
quando um cardume
de imortalidade nelas entra.
Vive na casa – e a casa continua de pé.
Vou aparecer em qualquer século.
Entrar e fazer uma casa para mim.
É por isso que os teus filhos
estão ao meu lado
e as tuas esposas,
todos sentados a uma mesa,
uma mesa para o avô e o neto.
O futuro é consumado aqui e agora,
e se eu erguer levemente
a minha mão diante de ti,
ficarás com cinco feixes de luz.
Com omoplatas como esteios de madeira
eu ergui todos os dias
que fizeram o passado.
Com uma cadeia de agrimensor,
eu medi o tempo
e viajei através dele como
se viajasse elos Urais.
Escolhi uma era que
estivesse à minha altura.
Rumámos para o sul,
Fizemos a poeira rodopiar na estepe.
Ervaçais cresciam viçosos;
um gafanhoto tocava,
esfregando as pernas, profetizava.
E contou-me, como um monge,
que eu pereceria.
Peguei no meu destino
e amarrei-o à minha sela;
e agora que cheguei ao futuro ficarei
erecto sobre os meus
estribos como um garoto.
Só preciso da imortalidade
para que o meu sangue continue
a fluir de era para era.
Eu prontamente trocaria a vida
Por um lugar seguro e quente
se a agulha veloz da vida
não me puxasse pelo
mundo como uma linha.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei  tarkovsky
1975



05 outubro 2016

antónio osório / é dado amar sempre mais




É dado amar sempre mais
um mesmo ser.

É dado confundir-se
com a quebração das ondas.

É dado manter
o rescaldo vibrante do fogo.


antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981






04 outubro 2016

josé agostinho baptista / despertar



Quis ser o teu senhor.
Quis subir as tuas árvores,
recomeçar tudo,
quebrar as cruéis molduras do tempo,
antes das chuvas.
Despenhei-me de insondáveis abismos,
ao centro,
onde as aves do meio-dia alisavam as penas.
Ardiam fogueiras distantes, do outro lado da
montanha.
Cinco velas ardiam sobre a mesa,
no salão dos teus passos furtivos.


josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006



03 outubro 2016

carla diacov / prólogo





tortuosa a questão de ser dita
dita a coisa que não ao vento pelas narinas
incompreensivos estofos da angústia e do desejo verborrágico
em ver narinas com gengivas
explico
há esse braço com dentes e dedos
enfiado numa boca por aí
era de datilografar em folhas e pétalas e era
de espalhar junto do vento agarrar
vestidinhos pelas anáguas
mas aí o mar
credos antes das pessoas
pessoas antes de serem orelhas que gritam diabo de mar
agora aqui
coisa abraçada em papel carinho e tinta
e tenho dito ainda o mar entre
um braço e outro uma orelha e outra e
isso tudo ainda das conversas
unificadas pela unha crescendo a dedinhos dados
ecos das línguas de fora do bucho mãe
e ninguém
muito menos você
vai poder dizer que eu não sou o comichão nas tuas
pregas vocais

irmã minha irmã

MarlaDiacov


carla diacov
ninguém vai poder dizer que eu não disse
douda correria
2016





02 outubro 2016

ricardo reis / não tenhas nada nas mãos




Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra

Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.

19-6-1914



odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946



01 outubro 2016

vladimir maiakóvski / o adeus



O táxi
                ficou-me com o resto do dinheiro.
- A que horas parte o comboio p'ra Marselha? -
Nos calcanhares
     Paris
                                  a acompanhar-me
com toda
                a sua inverosímil maravilha.
De lama
                e dos adeuses
                                  ficam-me os olhos tristes.
Meu coração
               sentimental
                                  com pancadas me abala.
Como eu teria desejado
               viver
                                   e morrer em Paris,
se não houvesse
                neste mundo -
                                   Moscovo!  



vladimiro maiakowski
autobiografia e poemas
trad. de carlos grifo
presença
1977






30 setembro 2016

luis antonio de villena / acerca dos anjos na poesia



(Jorge de Sena)


É verdade que ao dizer anjo podamos a realidade,
o que não significa negar que há corpos que se compram
nem tão-pouco o difícil do choque entre vidas opostas
(chame-se amor, camaradagem, vida em comum
ou qualquer outra relação que concilie oposição, torneio).
Ao dizer anjo fazemos uma súplica,
pedimos mais realidade e, simulando um truque metafísico,
postulamos a plenitude do corpo,
a queimadura sanguínea. (Não se oculta impureza.)
Há corpos que se compram – mas, claro, amigo –
e há sordidez e barro, palavras afiadas
e deslizes de sombra… (Toquei cinza.)
Mas também há corpos que se oferecem
 – e incluem a alma no conjunto –
e aí também há sordidez,
com manhãs muito ácidas, súbitos desencantos
que desmoronam tudo
(embora possa voltar a levantar-se,
pois existem amantes que semelham estimáveis
arquitectos e até serventes de pedreiro).
Ao dizer anjo não se é generoso
nem retórico, sem mais,
entende-se, apenas, que o mundo é imperfeito
mas que há rastos, sinais, rostos
de outra realidade que o saturnal invoca.
Ao dizer anjo pede-se morte, proclamando vida.
Ao dizer anjo – é certo – designamos o inumano,
o resplendor celeste de singulares humanos
que existem, e não existem, eleitos.



luis antonio de villena
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985




29 setembro 2016

arsenii tarkovsky / o espelho



II
Ontem fiquei à tua espera desde manhã.
Eles sabiam que não virias,
eles adivinhavam.
Lembras-te como o dia estava lindo?
Um feriado! Eu não precisava de casaco.
Hoje vieste, e aconteceu
que o dia foi cinzento, sombrio, e chovia, e era algo tarde,
e ramos frios com gotas escorrendo.
As palavras não podem consolar,
nem os lenços enxugar.


arsenii tarkovskii
o espelho
andrei tarkovsky
1975



28 setembro 2016

manuel alegre / e o bosque se fez barco



Já meu pais foi uma flor de verde pinho.
País em terra. (E semeá-lo uma aventura).
Depois abriu-se o mar como um caminho.
Depois o bosque se fez barco e o barco arado
dessa nova e fatal agricultura:
colher no mar o fruto nunca semeado.


manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974



27 setembro 2016

fiama hasse pais brandão / lápides


I
O mar bate como se o sopro
do separar as águas de novo
rasgasse a terra alcantilada.
Não o vejo, mas ao longe
oiço o êxtase, o rumor
das ondas infinitamente. Nós
calamo-nos, ouvindo a voz
interior apenas, e pensamos
nos livros que consubstanciam
a separação entre terra e água.



fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000



26 setembro 2016

carlos de oliveira / o círculo



Caminho em volta desta duna de cal, ou dum sonho mais parecido com ela do que a areia, só para saber se a áspera exortação da terra, o seu revérbero imóvel na brancura, pode reacender-me os olhos quase mortos.

O que eu tenho andado sobre este círculo incessante, e ao centro o pólo magnético ainda por achar, a estrela provavelmente extinta há muito, possivelmente imaginada, conduz-me sem descanso, prende-me como um íman ao seu rigor já cego.



carlos de oliveira
terra da harmonia
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998