31 agosto 2017

álvaro feijó / funâmbulo



A miséria é tão grande do meu lado
que me apetece ir combater
do lado dos inimigos.

Em espírito, passei.
                                  Chego, vaiado
pelo povo e ao som
das fanfarras explosivas dos mandantes.

E torno a ver
aquilo que dantes
vira, aumentado, talvez, milhões de vezes.

Oh! Morrer por morrer…


Eu sinto
que vale mais morrer do outro lado,
onde se morre mais limpo!



álvaro feijó
os poemas de álvaro feijó
portugália
1961







30 agosto 2017

josé carlos ary dos santos / retrato de rimbaud



Pois comigo na cama é que eu te queria
morder-te os sons visíveis e perversos
e enforcado nos cornos da poesia
esfregar-me nas imagens e nos versos.

Pois comigo na cama é que eu te queria
arco-íris de letras flor de gritos
dançando até ao espasmo da alegria
o apaixonado baile dos malditos.

Pois comigo na cama é que eu te queria
iluminado pelo cio aberto
da bala que se vê não se vigia
parece longe e entanto está tão parto.



ary dos santos
vinte anos de poesia
fotografias, 1970
círculo de leitores
1983






29 agosto 2017

fernando pinto do amaral / saudação



“Já não escuto o que dizes, voltarei
para junto do lago: o meu anjo
virá por não sei onde, irá trazer-me
os felizes recados de Deus.

‘Que a alma seja corpo’, e que este corpo
lhe saiba responder ao mais brilhante
sorriso. À luz da lua,
poisada no meu ventre, a sua mão.”


fernando pinto do amaral
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990




28 agosto 2017

abelardo linares / no alto



Junto ao mar. Às costas do velho molhe, cheira
a peixe  alcatrão, a sós, na noite
sem candeeiros nem luzes, com uma camisola fina
e a aragem no rosto, enquanto se ouve ao longe
música de arraial e o bater  das ondas,
a minha lembrança procura-te e ergue-te e segura-te
para olhar para ti tal como então olhava,
por cima de tudo o que passa e sucumbe.
No alto  mais fundo, onde permaneces ainda.



abelardo linares
trípticos espanhóis 1º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998



27 agosto 2017

alberto caeiro / li hoje quase duas páginas



XXVIII

Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos




26 agosto 2017

fiama hasse pais brandão / na terra dói



Na Terra dói
partilhar a curta eternidade,
e só no Eterno ignoto
o tempo é todo teu,
para poderes estar só.




fiama hasse pais brandão
entre os âmagos (1983-1987)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017





25 agosto 2017

jorge de sena / fidelidade




Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
com outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos se voltassem.



jorge de sena
fidelidade  (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




24 agosto 2017

rui knopfli / despedida



Tudo entre nós foi dito.
Estamos cansados e tristes
neste Outono de folhas pairando
e caindo.
Entre nós as palavras colocam um mundo
de silêncio e vazio estéril.
Os próprios sonhos se encheram de neblinas
e o tempo os amarelece.
Outono decisivo de folhas secas
e bancos abandonados de cimento frio,
onde não cantam aves
e o vento desce em brandos rodopios.
Apenas uma vaga angústia presente,
uma saudade sem recomeços,
a lembrança tépida a gelar como
veios de mármore.
Tudo entre nós foi dito,
olhamos o apodrecer do parque,
o vento, o crepitar leve das folhas
e, sem ressentimentos, dizemos adeus.


rui knopfli
1-líricas
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional-casa da moeda
1982





23 agosto 2017

julio martínez mesanza / tartária




Quando ao meu estéril coração eu volto,
pelas eternas dúvidas assolado,
penso em Tartária, em gélidos desertos,
e uma sombra começa a tomar forma
e uma forma se encarna lentamente,
enquanto me conquista a débil vontade.
Desejo então que o cavaleiro eterno,
a quem perturbam as imensas distâncias,
cheio de sobressalto, se ponha em marcha.



julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998




22 agosto 2017

antónio franco alexandre / a rectidão da água; o crescimento



a rectidão da água; o crescimento
das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para

o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.


antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996







21 agosto 2017

josé gomes ferreira / e ficámos para sempre nos olhos das aves




X
E ficámos para sempre nos olhos das aves
naquela noite em que os corações das flores
bateram no chão das nossas sombras.

Mas eras tu de facto que ias a meu lado?

Ou o meu sonho de ti
num corpo aproveitado?



josé gomes ferreira
gomes leal 1948
poesia III
portugália
1971





20 agosto 2017

álvaro de campos / não ter emoções, não ter desejos, não ter vontades,



Não ter emoções, não ter desejos, não ter vontades,
Mas ser apenas, no ar sensível das coisas
Uma consciência abstracta com asas de pensamento,
Não ser desonesto nem não desonesto, separado ou junto,
Nem igual a outros, nem diferente dos outros,
Vivê-los em outrem, separar-se deles
Como quem, distraído, se esquece de si...

s.d.



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993





19 agosto 2017

antónio reis / penso se é ainda



Penso se é ainda
a  infância que dura
ao comer em silêncio
a carne no pão

E tu imitas o pai
julgando que apenas
estou a brincar


antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017





18 agosto 2017

fernando pinto do amaral / lisboa-94




Descri  do tempo: a vida arrependeu-se
de todas as promessas, dia a dia
irrompendo e rompendo o infinito
do que chamamos febre, labareda
acesa desde sempre. Neste corpo
há um princípio de alma a respirar
como fogo roubado a outro a fogo
que mais ninguém conhece – ergueu-se a chama
e ondula ainda em cada gesto meu
a decompor-se ao longo de mil gestos
das pessoas autómatas, varrendo
a atmosfera das ruas, o prazer
de repetir retratos entre as curvas
da pálida cidade boquiaberta
em fim de quarta-feira. De improviso
a memória atravessa uma abertura
pelo meio de portas mal fechadas,
caleidoscópio histérico de encontros
em bares e restaurantes sob as luzes
cada vez mais à deriva. O pensamento
dilui-se ao ritmo dos lugares-comuns
no quase inútil mapa dos sorrisos
agora sobrepostos – engrenagens
nocturnas, reticências prolongando
as falas sempre vãs dos vãos amigos,
poeira de mil sonhos dissipados,
melodia espectral, oásis mudo,
palácio em ruínas, coração.



fernando pinto do amaral
o lento apocalipse do sangue
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000




17 agosto 2017

luís miguel nava / agora que de novo




O mar voa nas rochas, como
se a manhã se formasse onde se forma o cuspo eu aproximo-me
dele e arde a pele de que a memória
vem lentamente tomar conta.

Avanço com cuidado, agora que de novo
nas praias o mar solta os cães. O que chamávamos
verão são poços através
dos quais se some a pele pela memória dentro.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982






16 agosto 2017

manuel francisco t. / vibram as túlipas, os meninos




Vibram as túlipas nos canaviais
Que sabem as tul do que as faz vibrar?
Deus esquece o que dispôs no banco
De mármore do jardim do império

Escreveu a morte renasce muitas vezes
Nada quer dizer as túlipas o brasão
Do silêncio e as estátuas que comandam
A descida às neves, grutas e deuses

Para lá de Belém continuam a nascer
Os meninos que sabem das túlipas
Horóscopos da paixão, pentecoste

De pequenos melros. Deus os ajude
No seu  esquecimento a ao meu menino
O traga bem, o calção de veludo, etc.




manuel francisco t.
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990







15 agosto 2017

gil t. sousa / reviver



regressar
para que um tempo suspenso
possa tocar de novo as mãos
que tudo guardaram

na água parada
a educação das pedras erguidas
declamadas em margem

nas árvores repetidas
resgatar os olhos de então




gil t. sousa





14 agosto 2017

mário cesariny / rua 1.º de dezembro




À hora X, no Café Portugal
à mesa Z, é sempre a mesma cena:
uma toupeira erga a mãozinha e acena…
dois picapaus querelam, muito entusiasmados:
que a dita dura dura que não dura
a dita dita dura – dura desdita!
Um pássaro cantor diz que isto assim é pena
e um senhor avestruz engole ovos estrelados




mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991



13 agosto 2017

luís vaz de camões / elegia




A D. António de Noronha, estando
                                         o autor em Ceuta

[II]
   Aquela que de amor descomedido
pelo fermoso moço se perdeu
que só por si de amores foi perdido,
despois que a deusa em pedra a converteu
de seu humano gesto verdadeiro,
a última vez só lhe concedeu;
assi meu mal do próprio ser primeiro
outra cousa nenhüa me consente
que este canto que escrevo derradeiro.
   E se algüa pouca vida, estando ausente,
me deixa Amor, é porque o pensamento
sinta a perda do bem de estar presente.
Senhor, se vos espanta o sentimento
que tenho em tanto mal, para escrevê-lo
furto este breve tempo a meu tormento.
   Porque quem tem poder para sofrê-lo,
sem se acabar a vida co cuidado,
também terá poder para dizê-lo.
   Nem eu escrevo mal tão costumado,
mas n'alma minha, triste e saudosa,
a saudade escreve, e eu traslado.
   Ando gastando a vida trabalhosa,
espalhando a continua saudade
ao longo de ua praia saudosa.
   Vejo do mar a instabilidade,
como com seu ruído impetuoso
retumba na maior concavidade.
   E com sua branca escuma, furioso,
na terra, a seu pesar, lhe está tomando
lugar onde se estenda, cavernoso.
   Ela, como mais fraca, lhe está dando
as côncavas entranhas, onde esteja
suas salgadas ondas espalhando.
   A todas estas cousas tenho enveja
tamanha, que não sei determinar-me,
por mais determinado que me veja.
   Se quero em tanto mal desesperar-me,
não posso, porque Amor e Saudade,
nem licença me dão para matar-me.
   Às vezes cuido em mim a novidade
e estranheza das cousas, co a mudança
se poderão mudar üa vontade.
   E com isto afiguro na lembrança
a nova terra, o novo trato humano,
a estrangeira gente e estranha usança.
   Subo-me ao monte que Hércules tebano
do altíssimo Calpe dividiu,
dando caminho ao mar Mediterrano.
   Dali estou tenteando aonde viu
o pomar das Hespéridas, matando
a serpe que a seu passo resistiu.
   Em outra parte estou afigurando
o poderoso Anteu que, derrubado,
mais força se lhe estava acrescentando;
mas do hercúleo braço sojugado,
no ar deixou a vida, não podendo
da madre terra já ser ajudado.
   Nem com isto, enfim, que estou dizendo,
nem com as armas tão continuadas,
de lembranças passadas me defendo.
   Todas as cousas vejo remudadas,
porque o tempo ligeiro não consente
que estejam de firmeza acompanhadas.
   Vi já que a Primavera, de contente,
de mil cores alegres revestia
o monte, o rio, o campo alegremente.
   Vi já das altas aves a harmonia,
que até aos montes duros convidava
a um modo suave de alegria.
   Vi já que tudo, enfim, me contentava,
e que, de muito cheio de firmeza,
um mal por mil prazeres não trocava.
   Tal me tem a mudança e estranheza
que, se vou pelos campos, a verdura,
parece que se seca, de tristeza.
   Mas isto é já costume da ventura;
que os olhos que vivem descontentes,
descontente o prazer se lhe afigura.
   Ó graves e insofríveis acidentes
de Fortuna e de Amor que penitência
tão grave dais aos peitos inocentes!
   Não basta exprimentar-me a paciência,
com temores e falsas esperanças,
sem que também me atente o mel de ausência?
   Trazeis um brando animo em mudanças,
para que nunca possa ser mudado
de lágrimas, suspiros e lembranças.
   E se estiver ao mal acostumado,
também no mal não consentis firmeza,
para que nunca viva descansado.
   Vivia eu sossegado na tristeza,
e ali não me faltava um brando engano,
que tirasse os desejos da fraqueza.
   E vendo-me enganado estar ufano,
deu à roda Fortuna, e deu comigo
onde de novo choro o novo dano.
   Já deve de bastar o que aqui digo
para dar a entender o mais que calo,
a quem já viu tão áspero perigo.
   E se nos bravos peitos faz abalo
um peito magoado e descontente,
que obriga a quem o ouve a consolá-lo;
não quero mais senso que largamente,
Senhor, me mandeis novas dessa terra:
ao menos poderei viver contente.
   Porque se o duro Fado me desterra,
tanto tempo do bem que o fraco esprito
desampare a prisão onde se encerra,
ao som das negras águas de Cocito,
ao pé dos carregados arvoredos
cantarei o que na alma tenho escrito.
   E, por entre esses hórridos penedos,
a quem negou Natura o claro dia,
entre tormentos ásperos e medos,
com a trémula voz, cansada e fria,
celebrarei o gesto claro e puro
que nunca perderei da fantasia.
   E o músico de Trácia, já seguro
de perder sua Eurídice, tangendo
me ajudará, ferindo o ar escuro.
   As namoradas sombras, revolvendo
memórias do passado, me ouvirão;
e com seu choro, o rio irá crescendo.
   Em Salmoneu as penas faltarão,
e das filhas de Belo, juntamente,
de lágrimas os vasos se encherão.
   Que se o amor não se perde em vida ausente,
menos se perderá por morte escura;
porque, enfim, a alma vive eternamente,
e amor é afeito d'alma, e sempre dura.


luís vaz de camões
elegias