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28 março 2024

josé gomes ferreira / heróicas

 
 
XIX
 
Ouve, primavera: não te atrevas
a sair das rosas para o mundo.
 
Não venhas arrepender de beleza fácil
este meu instinto
– tão contra mim –
de morrer nas barricadas dos outros
pela beleza impossível do futuro.
 
 
 
josé gomes ferreira
heroicas (1936-1937-1938)
poesia I
portugália
1972




07 novembro 2023

josé gomes ferreira / pinhal

 




I

 

Poesia
– sabor próprio das palavras alheias
que se perderam dos objectos
naufragados na saliva das areias.
 
 
josé gomes ferreira
poesia V
pinhal - 1960
portugália
1973



20 julho 2023

josé gomes ferreira / melodia

 



 

IV
De súbito, acordei
perto das coisas distantes
com a vaga tentação
de dar um salto na sombra
até chegar ao coração da Morte.
 
Mas fiquei de olhos fechados
a cair dentro de mim
noutra sombra ainda mais densa
– onde dorme à minha espera,
tão ignorante de abismos,
a minha morte, só minha,
que nunca apagou estrelas
nem adormeceu raízes…
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972



24 abril 2023

josé gomes ferreira / homens de outros séculos

 
 
II
 
Homens de outros séculos:
invejai-me!
 
Cá estou no século vinte
no Dia do Grande Ruído
quando se escancaram na terra
as Portas de Bronze
para todos os recomeços…
 
…E os braços dos mortos abriram no chão
caminhos de garras
para obrigar as sombras dos homens a erguerem-se no êxtase
de morrer de pá!
 
Cá estou no século vinte
nesta paisagem de bocejos
e estrelas estagnadas
onde só há cegos
presos na própria noite
aos tombos de declive…
– sem ao menos suspeitarem
de que anda uma nova Morte pelo mundo!
 
Cá estou no século vinte
nesta primavera de cadáveres
tão contentes de terra
que até beijam as raízes
para que as flores dos outros
nasçam mais límpidas
nas manhãs do sol múrmuro a espreguiçar-se no vento
                                                           das planícies…
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia II
invasão 1940-1941
portugália
1962




28 outubro 2022

josé gomes ferreira / de repente

 


XIX
 
De repente
tudo se tornou mais fundo
para além da superfície
das pedras sem flor
e das árvores sem voz.
 
Tão fundo, tão fundo
que até a Morte
já não precisa de sair do mundo
para caber nos olhos de todos nós.
 
(E há lá quem suporte
esta dor que eu tenho
de saber que a Morte
é do meu tamanho!)
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia II
sonâmbulo 1941-1942-1943
portugália
1962




20 abril 2022

josé gomes ferreira / enchi de pedras e de cardos

 
 
VI
Enchi de pedras e de cardos
os caminhos da vida para mim…
 
E aqui estou eu agora neste trono de solidão,
braços vazios sem mundo,
a mostrar com orgulho a minha dor
– tão pequena afinal
para justificar as estrelas.
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972



17 janeiro 2022

josé gomes ferreira / bem

 
 
XLV
 
Bem. Sacudo as lágrimas da gabardine
e sento-me neste esconderijo de café sujo
a olhar através da montra em mim na rua
a treva mecânica
do amor vazio.
 
Quem me vir aqui a estas horas
há-de pensar: está à espera de uma mulher.
 
E estou.
 
Corpo subterrâneo.
Cabelos clandestinos.
Perfil que queima e neva.
Revolução.
Tu.
Justificação do nevoeiro.
 
Lume
para exercícios de névoa.
 
 
 
josé gomes ferreira
comboio 1955-1956
poesia IV
portugália
1971




18 julho 2021

josé gomes ferreira / vivam apenas

 
 
Vivam apenas.
 
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.
 
Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.
 
Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.
 
E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.
 
Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!
 
 
josé gomes ferreira
comício 1934
poesia I
portugália
1972





30 abril 2021

josé gomes ferreira / a morte de d. quixote

 
 
III
 
Pobres, gritai comigo:
 
Abaixo o D. Quixote
com cabeça de nuvens
e espada de papelão!
– E viva o Chicote
no silêncio da nossa Mão!
 
Pobres, gritai comigo:
 
Abaixo o D. Quixote
que só nos emperra
de neblina!
– E viva o Archote
que incendeia a terra,
mas ilumina!
 
Pobres, gritai comigo:
 
Abaixo o cavaleiro
de lança de soluços
e bola de sabão
no elmo de barbeiro!
– E vivam os nossos Pulsos
que, num repelão,
hão-de rasgar o nevoeiro!
 
 
 
josé gomes ferreira
a morte de d. quixote 1935-1936
poesia I
portugália
1972





07 abril 2021

josé gomes ferreira / cabaré

  
III
 
Perto das árvores
sob as estrelas
olho com orgulho para o céu
e sinto que pertenço ao universo.
 
A minha carne é de terra,
os olhos são de terra
e a minh’ alma, um pássaro sem corpo…
 
mas junto de ti,
no meio destas flores de papel
perfumadas de música,
sinto-me tímido e infeliz,
a tropeçar no corpo inútil.
 
E apetece-me não viver,
mas apenas existir.
Ser uma coisa qualquer
esquecida de criar.
 
 
 
 
josé gomes ferreira
cabaré 1932
poesia I
portugália
1972





25 novembro 2020

josé gomes ferreira / neste momento

 
 
I
 
Neste momento
um pássaro qualquer
canta, explica as flores
perto da margem dum rio.
 
Nunca ouvi esse pássaro cantar
nem sei onde o rio corre…
 
Mas todas as noites no meu quarto
tento aprender de cor
essa melodia que não ouço
– sentindo o coração pesado
como um pássaro morto.
 
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972





13 setembro 2020

josé gomes ferreira / do que sou



VIII

Do que sou
ao que penso
paira um voo
suspenso…

Mas tão subtil
que nem ata
o pântano vil
à nuvem de prata.

(Homem: não tenhas vergonha
de ser pântano como eu.
o pântano é que sonha
a nuvem do céu).


josé gomes ferreira
café 1945-1946-1947-1948
poesia III
portugália
1971







01 maio 2020

josé gomes ferreira / a caricatura do banqueiro…



                            (Lá de fora da Cidade vem o Coro da
                            Lamentação Geral em honra dos pobres her-
                            óis que morrem pelo que JULGAM-QUE-
                            EXISTIU. Festa fúnebre com foguetes de
                            lágrimas.
                                 Entramos no Banco. – Não há poemas
                            sociais sem bancos nem banqueiros. De cha-
                            ruto. )



II

A caricatura do Banqueiro…
(a verdadeira imagem ficou em casa a sorrir para o filho)
… dum lado para o outro
a entrar e a sair do espelho.

Parecia mal trazer os olhos secos
agora que os homens morriam
contra si mesmos
nos Dias Habituados.

E lágrimas? Nem uma.
Só as pérolas da mulher
choradas pelos náufragos
nos colos de bruma
dos bailes do Cofre Forte.

E era urgente,
era necessário
aquecer a morte.

Então
– sempre em casa a sorrir para o filho com a Boca Verdadeira –
untou-se de luz postiça,
correu ao sótão em frente
e com voz de sacrário
depois da burocracia da missa,
foi pedir as lágrimas emprestadas
à engomadeira
que continua a tossir nos versos de Cesário.

E ela deu-lhas.
«Leve-as. Até me apetece descansar um bocadinho da injustiça.»



josé gomes ferreira
poesia V
lágrimas trocadas - 1956
portugália
1973







25 abril 2020

josé gomes ferreira / a palavra revolução


III

A palavra Revolução.

Encontrei-a anónima nos olhos dos pobres,
nas barricadas dos livros,
no ódio à palavra guilhotina
– sim, havemos de arrombar as portas que só nós vemos nos
                                                                                              [ muros.

A palavra Revolução.

Encontre-a no salto fértil da morte para o sonho,
na manhã arrancada com mãos de sangue da noite,
na sensação de que tudo nos sai dos dedos
– até a dinamite do luar.


Encontrei-a
na esperança dos homens
a construírem novos segredos
com lágrimas e areia
– para a palavra Deus decifrar.



josé gomes ferreira
poesia V
memória – II 1959
portugália
1973








21 março 2020

josé gomes ferreira / e se fôssemos imortais?



XXVI

(«Morte e Transfiguração» de Strauss. Deixo
de ouvir, de súbito preocupado com a minha
morte.)



E se fôssemos imortais?
– silêncio complicado com o bafo dos homens nas estrelas.

Se houvesse repartições e escrita,
mangas-de-alpaca nas pedras e nos astros,
livros de Deve e Haver especiais,
carimbos com caveiras,
horas de morte registadas,
fabricação constante de espectros
para entrarem e saírem do Abismo
misturados com as nuvens
dos alçapões do dia?

Ó Strauss sem misticismo
– que burocracia!



josé gomes ferreira
sala de concertos 1951-1952-1953, etc… pelos anos fora
poesia IV
portugália
1971






20 fevereiro 2020

josé gomes ferreira / viver sempre também cansa!



Viver sempre também cansa!

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase verde…
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida…

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
«Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
Por uma bagatela.»

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosse acordar
a Morte ainda menina no meu colo…



josé gomes ferreira
viver sempre também cansa! 1931
poesia I
portugália
1972




08 novembro 2019

josé gomes ferreira / e ainda hoje por lá ando a correr



IV

E ainda hoje por lá ando a correr
na superfície das manhãs paradas
a gastar-me com os mortos
– e a deixar cair invenções de sombras nas estradas.


Depois perdi as mãos
de tanto escrever no musgo da parede
por baixo dum desenho obsceno inocente:

«Futuro,
deixa-me continuar a ter sede.»


                                  («Futuro.
                                  deixa-me continuar a ter sede.»
                                  Vou mandar desenhar este lema na bandeira
                                  vermelha com o meu brasão.)




josé gomes ferreira
poesia V
memória – I (1957-1958)
portugália
1973




05 agosto 2019

josé gomes ferreira / enterrava-se a noite



                (Skerzo)


VIII

Enterrava-se a noite
e às vezes também os astros
na alegria das férias
– para dar destinos azuis
às raízes dos cardos
cheias de estrelas
estéreis.


josé gomes ferreira
poesia V
memória – II 1959
portugália
1973






11 maio 2019

josé gomes ferreira / as crianças



XIII

As crianças
atiravam o Sol umas às outras
a brincarem no pátio
entre gritos alegres de poeira.

Não percebo porque os deuses
em vez de viverem com os homens
nos esperam na sombra
com caveiras de incenso
e invenção de pequenos enredos na morte
para entreter o silêncio.


josé gomes ferreira
poesia V
memória – I 1957-1958
portugália
1973






25 abril 2019

josé gomes ferreira / só hoje


XXXI

Só hoje
sinto esta verdade
em carne e sangue
de sol comum.

Liberdade
– muro transparente de cada um.



josé gomes ferreira
poesia V
grito plural 1958
portugália
1973