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27 outubro 2020

tomas tranströmer / segredos pelo caminho

 
 
A luz do dia bateu no rosto de alguém que dormia.
E esse alguém teve um sonho com mais vivacidade,
ainda que sem acordar.
 
As trevas bateram na cara de alguém que ia a andar
entre a multidão, sob os raios
impacientes e fortes do sol.
 
De repente escureceu, como quando cai uma bátega.
Eu encontrava-me num quarto com espaço para todos os instantes –
a sala de um museu de borboletas.
 
Ali, porém, o sol brilhava tão intensamente como antes.
Os eus pincéis impacientes davam cor ao mundo.
 
 
 
 
tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012




04 agosto 2020

tomas tranströmer / o barco – a aldeia



Uma traineira portuguesa, azul, enrola um bocado do Atlântico.
Bem ao longe, um ponto azul, mas eu estou lá – onde seis homens
     a bordo não veem que nós somos sete.

Assisti à construção de um barco destes, parecia um alaúde enor-
     me sem cordas
na ravina de pobreza: a aldeia onde lavam e lavam sem parar, com
     fúria, paciência, melancolia.

A praia apinhada de gente. Era um comício que fora dispersado, os
     altifalantes confiscados.
Soldados levaram o Mercedes do orador por entre a multidão, apu-
     pos rufavam contra as chapas do veículo.




tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012





28 janeiro 2020

tomas tranströmer / madrigal




     Herdei uma floresta densa onde raramente ponho os pés. Mas lá chegará o dia em que os defuntos e os viventes troquem de lugares. É então que a floresta se põe em movimento. Não perdemos ainda toda a esperança. Os maiores crimes continuam por desvendar, malgrado o esforço de tantos polícias. Do mesmo modo, algures nas nossas vidas, há um grande amor por revelar. Herdei uma floresta densa, mas hoje entro numa outra, plena de claridade. Tudo o que vive canta, serpenteia, abana, rasteja! É primavera, e o ar que respiramos é fortíssimo. Tenho um exame da universidade do olvido, e as mãos tão vazias como a camisa pendurada na corda de secar roupa.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012







03 setembro 2019

tomas tranströmer / passagem para peões



Vento gélido contra os olhos, raios solares dançam
no caleidoscópio das lágrimas quando atravesso
a rua, rua que me tem seguido tanto tempo,
e onde o verão gronelandês brilha nas suas poças d´água.

Ao meu redor rodopia toda a força da rua,
de que nada se recorda e nada quer.
No subsolo, bem no fundo, sob o trânsito,
espera aí há mil anos a floresta por nascer.

Ocorre-me que a rua olha para mim.
O seu olhar é tão suspeito que até o sol
parece uma meada cinzenta no escuro do céu.
Neste instante sou eu que brilho. A rua vê-me!




tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






01 junho 2018

tomas tranströmer / folha de agenda de cabeceira




Uma noite de maio aterrei
num lugar gélido
onde erva e flores eram pardas
mas o aroma exalado de cor verde.

Lá fui seguindo encosta acima
naquela noite daltónica,
enquanto pedras brancas
sinalizavam o caminho para a lua.

Um lapso de tempo
de uns minutos de altura
e cinquenta e oito anos de largura.

Atrás de mim,
para além do brilho difuso da água,
avistava-se a outra costa
e os que ali detinham o poder.

Gente com futuro
em vez  de semblantes



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






08 março 2018

tomas tranströmer / no âmago da europa




Carcaça que sou, flutuo entre duas comportas:
repouso na cama do hotel enquanto à minha volta a cidade desperta.
o bulício abafado e o cinzento do amanhecer penetram no quarto
e devagar transpõem-me para a fase seguinte: a manhã.

Escuto o horizonte. Os mortos querem dizer algo.
Fumam mas não comem, não respiram embora lhes reste a voz.
Como um deles, andarei apressado pelas ruas.
A catedral enegrecida, pesada como uma lua, é maré de águas vivas.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






09 outubro 2017

tomas tranströmer / meados de inverno



Um rasto de luz azulada
irradia da minha roupa.
Decorrida está metade do inverno.
Música de choques de mil blocos de gelo.
Fecho os olhos.
Há um mundo sem ruídos,
uma fissura,
onde os mortos,
como contrabando, são passados para o além.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012




26 setembro 2017

tomas tranströmer / elegia



Abro a primeira porta.
É um quarto espaçoso e soalheiro.
Um veículo pesado passa na rua
e faz tilintar as porcelanas.

Abro a segunda porta.
Amigos! Vocês beberam trevas
e contudo estão visíveis.

Abro a terceira porta. Um quarto de hotel acanhado.
A janela á para uma rua das traseiras.
Um lampião da rua ilumina o asfalto.
As bonitas sobras da experiência.


tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012