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30 novembro 2017

toni montesinos gilbert / room 1623




Os meus mortos e eu pensamos,
nesta insónia chuvosa de Nova Iorque,
na vida efémera, no azar que é respirar
aqui ou em qualquer outro sítio.

Os meus mortos e eu
vemos de um décimo sexto andar
a madrugada acesa
por algumas luzes no edifício em frente,
e ouvimos as sirenes dos automóveis ao longe:
polícias ou ambulâncias que levam a vivos ou a mortos
de um lado para outro, enquanto a cidade dorme.

Os meus mortos e eu não temos saudades uns dos outros
neste silêncio inventado da memória,
gaveta para as cartas nunca enviadas
e que se reescrevem pelo amor de sentir a ausência
cada dia de forma diferente, para que não acabe por apodrecer.

Os meus  mortos e eu pensamos recluir-nos no passado
apenas para não ficarmos sozinhos.



toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






25 março 2016

toni montesinos gilbert / epístola à memória



Escrevi muitas cartas. Algumas parecidas
à bela suavidade das lágrimas, amplas
como a noite que nos arranca o amor e o adormece.
Outras tiveram a eternidade da paixão.
Umas poucas páginas serviram para soltar
o próprio consolo, escondê-lo num envelope branco
e deixá-lo voar, junto com o passado, esquecê-lo
por fim, pois já ficou escrito: ficou o mundo triste
pelo poderoso infinito das palavras.

Os sentimentos vão-se desfazendo atrás de cada
letra, e tem-se saudade do que a ausência apagou
já da alma séria, murcha pala paciência,
o profundo vazio, a distância, o amor
impossível (o amor tão grande que não conheceu
outra noite além da sobra que sepulta a terra).

O resto de cartas nasceu quando chovia
dentro do outro mundo: no centro do coração
que sonha converter-se em pedra. E ser memória.




toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



04 maio 2013

toni montesinos gilbert / vida de areia




Quem dera que fosse feito de pó azul
para me diluir em todas as almas.
Se o meu corpo fosse pó a voar
passagens de céu, com um pouco
de frialdade, mereceria as mortes
irrecuperáveis, para sempre já
empoeirados pela sua ausência histórica.

Perderam-se, ficaram sem sangue.
E foi porque ninguém voltou a chamá-las.
E começaram a sonhar com montanhas,
e mais tarde com pedras, depois com areia
do tempo deserto. E por fim, com pó.
O sonho solitário conduziu-as
a cavar o amor numa estrela,
junto do que nunca puderam ter.

Eu quero chegar a todas as almas,
ser azul para distender o tempo,
ser um horizonte entre vida e morte,
esperar os amanheceres lento,
como se voltasse a nascer, azulado.

Quem dera que estivesse fora do século,
sem correspondência com nenhum espaço
concreto, sentir-me livre como pó
diluído em qualquer das ruas
conhecidas por onde caminhei.
Ser a presença total e absoluta.
Possuir o olhar omnipresente…

Mas apenas sou de carne e osso.
Um dia morrerei e não poderei pensar,
nunca mais, como construir um relógio
para sentir a vida mais extensa.




toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. Joaquim Manuel Magalhães
relógio d´água
2000